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Tinga

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Economia também adoeceu, e muito

Tinga durante o lançamento do projeto Fome de Aprender, em março de 2020 - Arquivo pessoal
Tinga durante o lançamento do projeto Fome de Aprender, em março de 2020 Imagem: Arquivo pessoal

18/03/2021 04h00

Na semana passada, exatamente em 11 de março (quinta-feira), completou um ano desde que a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou oficialmente a pandemia de Covid-19 pelo planeta. Esse vírus já tirou mais de 2,6 milhões de vidas e causou 120 milhões de casos em todo o mundo - no Brasil, já são mais de 282 mil óbitos.

Também há cerca de um ano, estava colocando nas ruas da Restinga, bairro na zona sul de Porto Alegre, o projeto Fome de Aprender. O ônibus que fica estacionado na esplanada deste bairro humilde da capital gaúcha nasceu com objetivo de distribuir 100 refeições diárias, no entanto, a grande demanda causa pela crise econômica em decorrência deste surto nos fez triplicar o número de refeições que distribuímos todos os dias. Este projeto começou a ser testado justamente um dia após o anúncio da OMS.

Inicialmente, iríamos servir apenas moradores de rua. Mas, com a crise, também assistimos famílias que possuem teto, porém estão sem condições financeiras de colocar uma cesta básica na mesa de suas casas. São pais de família que perderam os seus empregos, acompanhados por crianças impedidas de ir à escola em meio a este caos.

Projeto Fome de Aprender entrega cerca de 300 refeições diárias a moradores de rua - Fome de Aprender / Instagram - Fome de Aprender / Instagram
Projeto Fome de Aprender entrega cerca de 300 refeições diárias a moradores de rua
Imagem: Fome de Aprender / Instagram

A princípio, tínhamos em mente fazer mais para essas pessoas necessitadas, não apenas doar comida. Precisamos recolocar estes cidadãos na sociedade, ressocializá-los. Queríamos pôr em prática uma série de ideias, como apoio de uma equipe de psicólogos e a aproximação com empresas, com o intuito de ajudar estas pessoas que buscam emprego para não dependerem de terceiros. Já havíamos acertado com empresários para ajudar na capitação e profissionais da saúde, que iriam acompanhá-los.

Mas, infelizmente, não conseguimos colocar em prática estas propostas devido ao isolamento causado pela pandemia, que pegou em cheio a nossa economia.

Esta semana mesmo, uma pesquisa realizada conjuntamente entre o Sebrae e a Fundação Getúlio Vargas (FGV) apontou que, no mês passado, a queda média das receitas das pequenas e médias empresas (PMEs) brasileiras foi de 40% em relação à pré-pandemia. É um cenário devastador.

Sou solidário a todos pelas mais de 282 mil vidas perdidas aqui no Brasil. Também perdi amigos, mas acredito que a melhor maneira de superar este baque é batalhar para termos um mundo melhor, com ofertas de emprego, onde tenhamos menos fome e mais oportunidades de igualdade. Vejo que isso ajuda — não facilita — para que possamos trabalhar internamente essas perdas, pois o trauma é ainda muito maior quando voltamos para casa sem emprego, sem comida e sem esperanças de melhoras. Tenho amigo nesta situação, que a mãe faleceu e está desempregado, sem saber como pagar as contas.

Seguir as recomendações das autoridades sanitárias é importante para evitarmos esta doença se espalhe ainda mais. Mas e os menos abastados que não possuem condições de pedir tudo (comida, remédios, roupas...) em casa e fazer home office? O povão é obrigado a ir para a rua para sobreviver, encarando diariamente ônibus e trens lotados. Isto tudo tem tirado o meu sono.

Nas entregas de alimento que acompanho, ouço constantemente dos moradores de rua que a não encaram a sua existência como uma vida. É uma vida vazia, sem emprego, comida, teto, lazer... Sem condição alguma.

Gosto muito de cuidar da minha saúde, fazer exercícios físicos, pegar a minha bicicleta e pedalar pelo bairro onde moro na zona sul de Porto Alegre, que é muito arborizado. Estou ciente da necessidade do isolamento e tenho respeitado o máximo possível. Mas não consigo ficar parado, sentado no sofá ao ver tanta gente sofrer.

Semanalmente, recebo mais de 1.000 mensagens pedindo ajuda, seja comida, emprego, remédio... O nosso povo está desesperado. Testemunho isso quando vou às comunidades.

Já disse várias vezes que fui criado apenas pela minha mãe. Eu a via todas as noites sair de casa às 22h, indo até a parada de ônibus, levando apenas uma sacolinha bem pequena. Ela trabalhava a madrugada inteira num clube social, cuidava do banheiro durante casamentos e formaturas. No dia seguinte, logo cedo, eu ficava na janela de casa esperando a minha mãe chegar com sacolas cheias de comida, suco, refrigerante... Era o que sobrava das festas.

Ônibus do projeto Fome de Aprender é equipado com biblioteca itinerante com mais de 1.000 livros - Fome de Aprender / Divulgação - Fome de Aprender / Divulgação
Ônibus do projeto Fome de Aprender é equipado com biblioteca itinerante com mais de 1.000 livros
Imagem: Fome de Aprender / Divulgação

Perguntava a ela onde havia ido na noite passada, e a minha mãe me respondia que tinha ido trabalhar. Ali, ainda pequeno, identifiquei que trabalhar era engrandecedor, porque eu presenciava a Dona Nadir sair de casa com uma sacolinha vazia e voltava com outras duas repletas de coisas boas, tudo o que não tínhamos condições de comprar na época. Até hoje, enxergo o trabalho como oportunidade de transformação. Portanto, ainda é muito difícil assimilar essa proibição de sair para ir trabalhar.

No início do projeto Fome de Aprender, as mensagens que recebia eram mais de profissionais estabelecidos se voluntariando. Passado um ano, alguns destes agora me pedem ajuda. Uma história que mexeu comigo é de um garçom que sempre me atendida em um restaurante que costumava frequentar com minha família. Há algumas semanas, ele foi ao ônibus do projeto, acompanhado por dois filhos pequenos, pedindo para se cadastrar para pegar comida, pois o estabelecimento onde trabalhava fechou as portas. Até a nossa rede de parceiros que nos ajudava no ônibus está sentido esta crise.

Participo pessoalmente das entregas das refeições diariamente e isso tem me mantido vivo, por mais que seja contraditório, porque é um risco se aglomerar atualmente. Em algum momento o outro, nesta onda de críticas nas redes sociais, sou e serei julgado de alguma forma por estar na rua. Às vezes, penso que, se ficasse quieto no meu canto, não seria alvo de desaprovação, mas 99% destas brigas não são por mim. Me sinto vivo por me importar pelo próximo.

Esta crise financeira me afetou de alguma forma ou outra. Alguns dos meus negócios diminuíram, assim como paralisei as minhas palestras. Certamente, a conta ainda virá, mas a minha preocupação no momento é que a fila de pessoas que buscam comida no meu ônibus não aumente ainda mais.

Defasagem também na educação

Outro fato que tem me preocupado muito é o precipício educacional que iremos sentir nos próximos anos por causa das escolas fechadas. Até um relatório do Banco Mundial apontou que a pandemia pode fazer com que 70% das crianças do Brasil não aprendam a ler adequadamente. Isto irá resultar no futuro em prejuízos econômicos devido à perda de produtividade dos cidadãos.

Acredito muito na escola. O estudo é principal ferramenta para o desenvolvimento social. É um prejuízo incomparável crianças e jovens ficarem sem aulas presenciais durante um ou dois anos. Vejo isso com os meus filhos, porque não conseguem se concentrar em mais nada.

Sou muito rígido quando o assunto é educação, principalmente com o meu mais novo, que está com 13 anos. A minha marcação é cerrada, fico em cima dele logo cedo, mas vejo que, horas depois de aulas online, ele tem dificuldades de captar os ensinamentos. Acho que é quase impossível aprender remotamente todos os dias.

A questão presencial gera uma disciplina, um comprometimento, pois a criança precisa acordar cedo, se lavar, se vestir, ir até o colégio... Essa liberdade de não ter a obrigação de ir à escola é perigosa. Sei que ninguém escolheu isto neste momento de pandemia. Mas, com este modelo de estudo remoto, estamos ajudando os nossos filhos a passarem de ano Isto não significa aprender, crescer e evoluir. É preciso ter comprometimento.

Conforme mensagem que recebi, aceitar e compreender a dor do outro é empatia. Acatar que outras pessoas tenham opiniões diferentes da nossa é democracia. Fazer chacota da opinião alheia sem conhecer a realidade do próximo já é ignorância.

*Com colaboração de Augusto Zaupa