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Carlos Alcaraz e o quebra-cabeças que Roger Federer completou

O talento é inquestionável. Carlos Alcaraz possui qualidades dignas de comparação com os maiores da história - algo que já foi dito por um punhado de nomes importantes no meio do tênis, como os próprios Novak Djokovic e Roger Federer, além de técnicos de currículo vencedor como Ivan Ljubicic, que trabalhou com o suíço, e Patrick Mouratoglou, ex de Serena Williams. Há quem diga ainda, como John McEnroe, que Carlitos é o tenista de 20 anos mais completo da história do tênis.

Exagero? Nem tanto. No mundo do tênis, onde os egos são tão valiosos quanto frágeis, é raro ver tanta gente exagerar ao mesmo tempo. Alcaraz, é bom que se diga, mereceu os elogios. Foi campeão do US Open e número 1 do mundo aos 18, em 2022, mesmo ano em que somou importantes vitórias sobre Djokovic e Nadal. No ano passado, deu um passo adiante e conquistou Wimbledon, destronando em um jogaço de cinco sets um Djokovic que não perdia na grama do All England Club desde 2017, quando jogou lesionado e abandonou nas quartas de final. Um teste técnico, físico e mental como nenhum outro no tênis. Federer teve três chances (2014, 2015 e 2019) e foi reprovado em todas. Nadal (2011) também falhou. Alcaraz foi aprovado com nota máxima.

Se as qualidades existem e todos elogios se justificam, por que Alcaraz não vem conseguindo reproduzir o sucesso desde Wimbledon? Após o All England Club, o espanhol sofreu duas derrotas para Djokovic, mais duas para Alexander Zverev, uma para Daniil Medvedev e uma para Jannik Sinner. Nos momentos mais importantes dos maiores torneios, Carlitos não conseguiu se impor como antes. Por quê?

A resposta é um tanto complexa, mas passa por uma dose de indisciplina (ou rebeldia?) tática que tem a ver tanto com um excesso de agressividade quanto com a vontade de produzir lances de efeito mesmo quando há uma opção mais simples - e menos arriscada - para ganhar o ponto. Tem a ver com escolhas ruins dentro dos ralis e com um número desnecessariamente alto de bolas de baixa porcentagem - aquelas em que há um risco de erro maior.

O jornalista americano Steve Tignor, um dos mais competentes do meio, destaca três pontos assim na derrota desta quarta-feira para Alexander Zverev. E se olharmos com um pouco mais de atenção, vamos encontrar uma dúzia deles em cada uma das vitórias de Alcaraz. Pontos inconscientemente escondidos atrás placares (porque nada como uma vitória para fazer parecer que está tudo certo) e da grande superioridade técnica que Carlitos possui em relação à grande maioria do circuito. Algo que Dan Evans mencionava já em setembro ano passado, pouco antes de Alcaraz sofrer a decepcionante derrota para Medvedev nas semifinais do US Open.

O enigma que Federer desvendou

Mantidas as devidas proporções (negrito aqui, por favor) - até porque os motivos não são 100% semelhantes - o momento que Alcaraz atravessa não é tão diferente assim do que Roger Federer viveu mais ou menos na mesma idade, antes de conquistar seu primeiro slam e deslanchar na liderança do ranking.

Em 2001, ano em que anotou a histórica vitória sobre Pete Sampras em Wimbledon, onde o americano era heptacampeão e favorito ao octa (coincidentemente, Djokovic também é hepta em Wimbledon e era favorito ao octa quando tombou diante de Alcaraz), Federer era um grande jovem talento, mas que ainda não conseguia fazer tudo em seu tênis funcionar como e quando ele precisava. O suíço perdia jogos ganháveis e parecia perdido sobre o que fazer em quadra em certos momentos.

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Federer tinha um tênis com muitos recursos, mas ainda não havia encontrado a maneira mais eficiente de usá-los para vencer com a frequência que gostaria. O melhor exemplo disso era a rivalidade com Lleyton Hewitt, um tenista com menos recursos e bolas menos potentes, mas com um jogo mais organizado e que tirava o máximo de seu potencial. Consistência, trocas longas, força mental e passadas precisas que puniam oponentes mais agressivos e/ou afobados e/ou impacientes como Roger.

"LLeyton me fez entender o meu jogo e definitivamente fez de mim um jogador melhor", disse Federer alguns anos atrás. A solução para o suíço foi subir menos à rede. Jogar mais do fundo de quadra e controlar as partidas lá de trás. Embora continuasse um exímio voleador, suas subidas se tornaram menos frequentes, e foi assim que Roger fez tudo se encaixar em seu tênis. Após o "clique", veio o domínio. Federer conquistou 42 títulos e 315 vitórias e sofreu apenas 24 de 2004 a 2007. Onze (!) títulos de slam. Uma soberania como o tênis masculino jamais havia visto. E o histórico de confrontos diretos, que esteve em 7 a 2 para Hewitt, transformou-se em 18 a 9 a favor de Roger.

O Alcaraz que saiu da quadra após a derrota para Zverev em Melbourne lembrava aquele Federer pré-clique (mantidas as devidas proporções - porque não custa repetir). "Não sei o que aconteceu", disse na coletiva. De fato, Carlitos passou dois sets perdido em quadra, batendo forte na bola, acumulando erros não forçados e descomplicando a vida de um rival que, por sua vez, fazia uma grande apresentação. O espanhol não fez ajuste tático algum durante o encontro e não fosse um tie-break mágico - daqueles que só ele e alguns poucos são capazes de produzir - no terceiro set, teria rumado para o aeroporto ainda mais cedo.

Alcaraz errou bolas porque foi mais agressivo do que precisava, como Tignor bem apontou, mas também perdeu pontos porque escolheu mal o que fazer e quando fazer. Carlitos é um belo voleador, mas subiu à rede quando não devia - ou não precisava - e levou passadas; é dono de curtinhas fantásticas, mas falhou seguidas vezes ao usá-las quando tinha opções melhores; e deu pontos de graça ao tentar disparar golpes indefensáveis quando podia ter vencido sem correr tantos riscos.

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Tipo de coisa que acontece com quem tem muitos recursos, como aconteceu com Federer mais de uma década atrás. E acontece com Alcaraz, que, além das muitas opções, demonstra grande admiração por seus próprios golpes e uma vontade de deixar o público boquiaberto com bolas espetaculares (como a do vídeo acima!) - algo que lhe custa caro em algumas ocasiões.

Cabe a Carlitos, agora, encarar esse desafio. Entender como usar todo seu potencial para vencer a elite do tênis com a frequência que seus golpes possibilitam; como domar a tentação de correr riscos quando eles não são necessários; como processar o que acontece em quadra a tempo de fazer as melhores escolhas - e não necessariamente as mais, digamos, "emocionantes". É a hora de colocar as peças na mesa, medi-las e entender como elas se encaixam. É hora de completar o quebra-cabeças.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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