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Flavio Gomes

REPORTAGEM

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Por que a Netflix, com 'Drive to Survive', é a grande sacada da Fórmula 1

Os dez episódios da 4ª temporada de "Drive to Survive" já estão disponíveis no serviço de streaming - Divulgação/Netflix
Os dez episódios da 4ª temporada de "Drive to Survive" já estão disponíveis no serviço de streaming Imagem: Divulgação/Netflix

Colunista do UOL

14/03/2022 04h00

Esta é parte da versão online da edição deste domingo (13/3) da newsletter de Flavio Gomes. Para assinar o boletim e ter acesso ao conteúdo completo, clique aqui.

Quando Bernie Ecclestone vendeu a Fórmula 1 para o Liberty Media Group, dos EUA, em 2016, a categoria se livrou dos grilhões que dificultavam sua penetração no infinito e incontrolável mundo da internet, algo a que o veterano dirigente inglês resistia por sua fidelidade canina a um universo que conhecia muito bem: o da televisão.

Bernie sempre viu a F-1 como um esporte feito para a TV e sempre viu na TV a maior fonte de receita para o esporte, vendendo os direitos de transmissão por fábulas inimagináveis ao redor do mundo durante décadas. Foi o que fez da F-1 uma modalidade milionária, "uma Copa do Mundo a cada quinze dias", como ele dizia.

Quando o pay-per-view era ainda um negócio incipiente, ameaçando o jovem reinado da TV a cabo, Ecclestone assumiu o controle da geração das imagens e padronizou o espetáculo fazendo da FOM, a Formula One Management, uma verdadeira emissora itinerante com seus enormes caminhões prateados que rodavam a Europa carregando os equipamentos que eram, então, montados em gigantescas estruturas em cada autódromo visitado pelo Campeonato Mundial.

Suas objeções à internet eram menos geracionais que financeiras. Bernie, um homem nascido em 1930, entendia que não era justo um canal de TV pagar uma fortuna pelas imagens da F-1 para que elas fossem disseminadas de graça pelas cada vez mais numerosas plataformas oferecidas pelos computadores e pelos celulares. Queria arrumar um jeito de ganhar dinheiro com elas também.

Não deu tempo. Ecclestone deixou de apitar na categoria quando passou o negócio adiante e os americanos liberaram geral. Era inimaginável querer controlar os bilhões de usuários de redes sociais que, na prática, passaram a contribuir com a recente onda de popularização da categoria com seus vídeos, memes, tuitadas, lives, stories e tudo mais que hoje faz parte da vida de uma geração mal saída das fraldas, como de outras que não sabem exatamente como era o mundo antes da internet — quem tem menos de 40 anos se encaixa nesse perfil.

Mas Bernie estava certo quando priorizava a natureza televisiva da F-1, e vou explicar por quê. A principal ferramenta escolhida pela Liberty para fazer de seu novo produto um sucesso de crítica e de público não foi nenhuma dancinha no TikTok, nem algum streamer "que fala a língua dos jovens" ou algo efêmero e volátil que tem a duração de uma postagem no Instagram. Foi, sim, "Drive to Survive", a série produzida pela Netflix cuja quarta temporada foi lançada na semana passada, poucos dias antes da abertura do Mundial, que começa domingo (20), no Bahrein.

A Netflix nasceu em 1997 vendendo DVDs pelo correio e embora passe a impressão aos mais novos de existir desde sempre, implantou seu serviço de streaming há relativamente pouco tempo, no início da década de 2010. Na essência, é aquilo que Bernie achava que daria muito certo na F-1: oferecer a quem quisesse pagar algo que pudesse ser visto na TV; algo mais sólido e rentável do que um vídeo no YouTube.

Ao criar a série mostrando as entranhas da F-1 com ares de documentário misturado com dramatização, a Netflix foi buscar um público diferente daquele que simplesmente acompanhava as corridas a cada duas semanas na TV.

Esse estava estabilizado, mas envelhecia. Era preciso "pescar" aqueles que não viveram o grande boom de popularidade da F-1 nos anos 1980 e 1990, puxado pela disseminação dos direitos de TV para todo o planeta. Era preciso ir ao encontro de um público que já tinha uma relação bem diferente com o aparelho instalado na sala de casa ou no seu quarto: aquele que escolhe quando e o que quer ver na tela grande acionada pelo infalível controle remoto, acompanhado de um balde de pipoca e algumas latinhas de cerveja ou refrigerante.

"Drive to Survive" é genial. Para quem conhece a F-1 de perto ou a acompanha há mais tempo, a série talvez pareça um pouco pueril e fantasiosa em alguns momentos, resvalando às vezes na infantilidade. Mas mesmo os mais enfezados e mal-humorados diante dos novos tempos da comunicação têm de reconhecer: é um produto televisivo brilhante, que seduz até quem nunca assistiu a uma corrida na vida.

Tem suas baboseiras, claro. Os jornalistas Will Buxton e Jennie Gow, que pontuam a condução de cada episódio, se excedem em platitudes e obviedades como "na corrida não há margem para erros ou falhas" ou "agora é pra valer".

A narração em "off", que emula antigas transmissões radiofônicas (recurso usado pela primeira vez em "Grand Prix", filme de 1966 dirigido por John Frankenheimer que é considerado até hoje o maior clássico do cinema tendo a F-1 como pano de fundo), também abusa da paciência de quem tem mais de oito anos de idade, com frases como "quanto mais rápida a volta, mais na frente do grid eles largarão".

Mas é tudo perdoável diante do espetáculo de imagens, edição, sonorização e escolha dos personagens e histórias de cada episódio.

Figuras como Günther Steiner e Jost Capito, respectivamente chefes da Haas e da Williams, estariam condenados ao ostracismo no ambiente competitivo da F-1 se não recebessem o espaço que têm na série. Suas pequenas equipes se agigantam e os dramas corriqueiros do automobilismo — carro que quebra, piloto que erra, resultado que não vem — se transformam em verdadeiras epopeias.

Toto Wolff, da Mercedes, e Christian Horner, da Red Bull, viram inimigos mortais dignos das melhores fitas de bandido e mocinho. Pilotos que raramente são protagonistas do campeonato, como Valtteri Bottas, Esteban Ocon e Sergio Pérez, ganham uma estatura que a História, com H maiúsculo, provavelmente lhes negaria.

A produção de "Drive to Survive" (aqui traduzido como "Dirigir para viver") invade a intimidade de pilotos e chefes de equipe nas pistas e fora delas, com cenas gravadas em suas casas, dentro de aviões, restaurantes, pistas de motocross ou quadras de hóquei no gelo.

Registra momentos impagáveis, como a ameaça de Dmitry Mazepin de tirar o patrocínio da Haas se seu filho Nikita não recebesse um novo chassi, ou Yuki Tsunoda deixando seu pequeno apartamento em Milton Keynes, na Inglaterra, para viver em Faenza, na Itália, onde a AlphaTauri teria mais condições de controlar sua rotina.

E documenta episódios decisivos, como George Russell sendo comunicado de que tinha sido escolhido para pilotar para a Mercedes em 2022, Lewis Hamilton nos fundos dos boxes de sua equipe cobrando punição a Max Verstappen por ter desrespeitado bandeiras amarelas em Losail, ou Wolff e Horner discutindo com o diretor de prova Michael Masi, em Abu Dhabi, na prova que decidiu o Mundial do ano passado.

A F-1 já se habituou, nos últimos quatro anos, a conviver com "o pessoal da Netflix". Alguns até reclamam porque aparecem pouco, como Russell comenta num dos episódios da quarta temporada. Pierre Gasly, da AlphaTauri, se queixa porque "eles não pagam nada" aos pilotos para participarem da série, e o resmungo é incluído numa cena. Palavras ao vento, sem filtro, se espalham pelos capítulos apresentando um lado da F-1 que normalmente câmeras e microfones não captam.

"Drive to Survive" não tem a intenção de relatar corrida a corrida como foi o Campeonato Mundial. A linha narrativa não é cronológica e dispensa chatices técnicas sobre motores, suspensões e aerodinâmica. Mas isso é proposital. A prioridade é investir em bons personagens e contar boas histórias exagerando no drama, se for preciso.

É verdade que na quarta temporada algumas figuras que poderiam render casos interessantes infelizmente foram ignoradas — como os veteranos Fernando Alonso, Sebastian Vettel e Kimi Raikkonen, por exemplo. Mesmo Max Verstappen, o campeão, também aparece pouco fora do carro, pelo simples fato de que não gosta da série e acha que ela mostra uma F-1 "que não existe" — por isso, não permite que equipes da Netflix fiquem coladas nele nos autódromos, muito menos na vida privada.

Mas há algumas pérolas inesperadas que compensam as ausências, como a participação de Susie Wolff, ex-piloto e atual chefe da equipe Venturi na Fórmula E. Ela é casada com Toto Wolff, da Mercedes, e acaba sendo a responsável pela melhor definição possível da F-1 para quem ainda não a conhece direito: "Este é um esporte brutal. Você deve ser implacável e competitivo. Mas não precisa ser um babaca para ser bem-sucedido".

Se você não viu ainda "Drive to Survive", veja. Vale a pena maratonar. É uma boa forma de se preparar para o campeonato que começa domingo e imaginar, ao longo dos próximos meses, o que vai virar episódio da temporada do ano que vem.

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