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Única medalha do boxe brasileiro passa aniversário de 40 anos em branco

Maurício Dehò<br/> Em São Paulo (SP)

24/10/2008 07h15

Nesta sexta-feira, uma das maiores conquistas do boxe brasileiro completa 40 anos sem qualquer homenagem. Menos lembrado do que nomes como Éder Jofre, Miguel de Oliveira e Acelino "Popó" Freitas, o paulistano Servílio de Oliveira é dono da única medalha olímpica para o país em uma modalidade que soma oito títulos mundiais. E mostra alguma amargura com a ausência de celebração do seu bronze na Olimpíada do México-1968, pelos pesos mosca. "O pessoal da modalidade em vez de exaltar minha medalha prefere esconder", lamenta.

Empresário que levou Valdemir Pereira, o Sertão, ao título mundial há dois anos - e presenciou seu sofrimento com uma hepatite -, Servílio hoje se dedica também a um projeto social, no bairro de São Mateus, Zona Leste de São Paulo, chamado Esporte Para Todos. Mas fala com saudade dos velhos tempos.

"Era uma época romântica", lembra o ex-pugilista, medalhista aos 20 anos e hoje com 60. "Antigamente dava satisfação defender o país. Hoje, tenho minhas dúvidas". Além do pódio no boxe amador, ele se aventurou como profissional e deixou o esporte invicto em 20 lutas, por conta de uma lesão. Um descolamento de retina, adquirido em combate, tirou a visão de um de seus olhos e o impediu de chegar à disputa de um título mundial.

Em busca de novos talentos e, quem sabe, um novo medalhista olímpico, ele torce para o seu feito ser repetido e até acha que não deve demorar. "Com dinheiro é fácil de trabalhar, não poderia ser diferente", dispara, alfinetando a Confederação Brasileira de Boxe. Em entrevista ao UOL Esporte na sede do projeto em que crianças têm aula de boxe gratuitamente, Servílio contou sobre sua conquista, relembrou outros momentos do passado e falou das esperanças para o boxe brasileiro.

UOL Esporte - Quarenta anos da medalha de bronze, a única do boxe brasileiro. O que significa para você lembrar-se disso?
Servílio de Oliveira: Para mim é um motivo de muita satisfação o fato de conquistar uma medalha e entrar para a história, porque, queira ou não, seu nome está lá. Minha medalha foi a 14ª vencida por um brasileiro numa época em que elas eram minguadas. Meus netos saberem que o avô deles foi um atleta de ponto é muito importante.

A ÚNICA MEDALHA DA HISTÓRIA
Maurício Dehò/UOL Esporte
Servílio de Oliveira exibe sua medalha de bronze, que completa 40 anos nesta sexta
Arquivo Pessoal
Na Cidade do México-1968, o paulista (e) perdeu na semifinal, mas subiu ao pódio
Arquivo/Folha Imagem
A promissora carreira no boxe acabou cedo, após sofrer um descolamento de retina
Maurício Dehò/UOL Esporte
Hoje, além de empresário, Servílio cuida de um projeto social, com aulas de boxe grátis
DEFESA DE TÍTULO EM LAS VEGAS
UOL Esporte - Quais as melhores recordações?
Servílio: Antigamente era uma época romântica, não havia muito incentivo, você treinava porque suava a camisa mesmo para defender um clube. Isso não acontece hoje com o profissionalismo do boxe e de todas as modalidades, haja vista o futebol, em que os moleques de 13 anos já visam a contratações astronômicas. Antigamente dava satisfação defender o país. Hoje, eu tenho as minhas dúvidas.

UOL Esporte - Conte um pouco da conquista em si, daquela disputa.
Servílio: O mais difícil foi a adaptação à altitude (cerca de 2.200 m). De manhã cedo, quando ia para a quadra correr, faltava ar, então foi complicado. A primeira luta foi contra um boxeador da Turquia, Engin Yadigar, uma disputa equilibrada, difícil, que ganhei por pouco. Estava um pouco nervoso e o adversário era de bom nível. Na segunda, peguei um lutador de Gana alto e forte, Joseph Destimo. Ele veio de vitória contra um canadense e o derrubei duas vezes. E na semifinal encarei o mexicano (Ricardo Delgado). As pessoas já foram abrindo os olhos dele em relação a mim e ele foi astuto, evitou o combate e saiu vencedor, ficando depois com o ouro.

UOL Esporte - Na casa do adversário foi mais difícil?
Servílio: Foi o mais difícil mesmo. Se eu passasse por ele, fatalmente ficaria com a medalha de ouro. Se minha cabeça fosse outra, eu teria sido campeão, porque foi tão difícil sair do Brasil... O Brasil só pensava em futebol, como é até hoje, então não havia verba para mandar o boxe. Acabaram enviando dois pugilistas de última hora: eu e Expedito Alencar. No fim, ganhei a medalha, uma das três do Brasil junto com atletismo (Nelson Prudêncio, prata) e vela (Burkhard Cordes e Reinaldo Conrad, bronze).

UOL Esporte - Fora dos ringues, o que mais te marcou no México?
Servílio: As Olimpíadas foram marcadas como Jogos da Discórdia. O povo do país não queria a competição, por vários problemas e por acharem que não deveria se investir nisso. Houve protestos e mortes. E, nas pistas de atletismo, os americanos negros fizeram o chamado Black Power, empunhando luvas pretas no pódio, em protesto pelo preconceito racial que sofriam nos Estados Unidos.

UOL Esporte - Haverá homenagem ao aniversário da medalha?
Servílio: Não, não... Não tem homenagem. Para não dizer que ninguém fez homenagem, o Sesc de Santos me fez, fui dar uma palestra lá, e o Sesc de Itaquera também, lembrando os 40 anos.

UOL Esporte - Você vê isso como algo importante?
Servílio: Vejo sim, porque o pessoal da modalidade em vez de exaltar a medalha prefere esconder.

UOL Esporte - A Confederação nunca te procurou?
Servílio: Não, absolutamente nada. E nem quero também. Pode ver que já fizeram torneios com nome de Éder Jofre, Miguel de Oliveira, mas Servílio de Oliveira nunca. E nem quero.

ÉDER JOFRE: INÍCIO E ADEUS
Éder Jofre, o famoso Galinho de Ouro e primeiro campeão mundial do boxe brasileiro, foi o principal responsável pela entrada de Servílio de Oliveira no boxe. Ouvindo às lutas do ídolo pelo rádio, o jovem paulistano resolveu tentar a sorte no esporte, o que culminou no bronze de 1968.
Mas não foi só. Ambos chegaram a treinar juntos e fizeram o derradeiro capítulo de suas carreiras em cima do ringue. Já aposentados, em 1996, Servílio e Jofre se enfrentaram em uma exibição no Ginásio do Ibirapuera, lembrando os bons tempos de lutadores.
MAIS SOBRE SERVÍLIO E ÉDER JOFRE
UOL Esporte - Mas vocês têm uma relação ruim?
Servílio: Talvez por eu ser oriundo do boxe desde os 12 anos, enxergo algumas coisas e contesto procedimentos da seleção brasileira, o que gera atrito. As pessoas gostam que você seja servil. A partir do momento que se começa a contestar, te enxergam como uma pedra no sapato e com certeza me vêem assim.

UOL Esporte - E como você vê a situação hoje, com um investimento maior?
Servílio: O trabalho tem sido relativamente bom e não podia ser diferente, com dinheiro é fácil de trabalhar, após o investimento do governo federal. Essas viagens (de intercâmbio da seleção) vieram a calhar.

UOL Esporte - Faltou apenas uma luta para Washington Silva e Paulo Carvalho chegarem a medalha na China. Você acha que está perto?
Servílio: Acho que sim, o Paulinho podia ter trazido, mas para acontecer falta bastante. Falta conscientização, investir mais o dinheiro em quem realmente pode trazer o medalha, que são os atletas.Esse dinheiro tem que ser levado para as áreas de massa, para descobrir bons valores.

UOL Esporte - Quais foram as maiores dificuldades para seguir carreira no boxe?
Servílio: A maior dificuldade já era o apoio. O esportista precisa de condições para se desenvolver. Quem ocupa cargo político é mais privilegiado do que quem toma soco, então as prioridades têm de ser invertidas.

UOL Esporte - Logo depois dos Jogos você já passou para o profissional. Como foi?
Servílio: Muita gente me aconselhou para eu não passar e mesmo a academia Pirelli, em que eu treinava e trabalhava. Era coletor de amostras e depois passei a trabalhar no almoxarifado. Eu passei a profissional e em cinco lutas foi campeão brasileiro. Na nona, me tornei campeão sul-americano, no Equador. Lutei com francês, americano, mexicano, até ter o descolamento de retina em 1971 (contra o norte americano Tony Moreno, no Ginásio do Ibirapuera, em São Paulo).

NOS RINGUES E NOS NEGÓCIOS
Crédito
Servílio terminou sua carreira profissional sem derrotas e virou técnico e empresário
Crédito
Trabalhou com lutadores como Valdemir Pereira, o Sertão, campeão mundial (2006)
TODAS AS NOTÍCIAS DE ESPORTE
UOL Esporte - Como foi o momento da lesão?
Servílio: Foi um inchaço na vista que, depois de alguns exames, foi diagnosticado como descolamento. Fiz uma cirurgia em Campinas, mas perdi a visão de um olho. Fui então para o Chile, porque minha esposa é chilena, e tive dois filho lá. Eu trabalhava em um serviço público, recuperando móveis.

UOL Esporte - Você chegou a ser preso no Chile, não é?
Servílio: Cheguei em março de 1972 e em 1973 houve o golpe militar, em que fui detido. Os caras me levaram para a delegacia, tive que contar minha vida toda. Outras pessoas da minha família também ficaram detidas, alguns por meses lá no Chile. Era uma caça às bruxas, se você pensasse diferente era oposição e ia para a cadeia. Mataram muita gente, tinha toque de recolher e tudo... Voltei ao Brasil por ter perdido o emprego e precisar cuidar dos meus filhos, José Luís e Gabriel. Fui bem aceito aqui e resolvi lutar.

UOL Esporte - Como foi esta volta aos ringues mesmo após a lesão?
Servílio: Foi duro. Decidi voltar porque eu tinha condições físicas e confiava em mim. E, em segundo lugar, porque era mais uma entrada (de dinheiro) para eu cuidar dos meus filhos. Subi rapidamente no ranking e, quando fui ao Chile recuperar meu título sul-americano, os caras não me deixaram de lutar, dizendo ter a intenção de proteger minha integridade física. Aquele chileno não ia ganhar de mim nunca...

UOL Esporte - Você ficou revoltado?
Servílio: Fiquei triste, porque era uma oportunidade de mostrar o que eu sabia na casa da minha mulher e dos meus dois filhos que nasceram lá. Eu poderia ter ido muito além e ter sido campeão mundial. Também não recebi a bolsa que ganharia. Depois disso passei a ser auxiliar técnico na Pirelli até 1992 e, quando parou o boxe lá, eu fui para o São Caetano, onde estou até hoje, como empresário.

UOL Esporte - O que ainda falta para o boxe nacional?
Servílio: Temos material humano e o que falta para crescer é uma continuidade para o boxe profissional. No amador, com verba do governo, o boxe conseguiu um bom destaque. No profissional é o mesmo, quando houver uma verba para se fazer eventos uma vez por mês, atraindo a televisão, o público vai se acostumar a ver boxe e haverá um crescimento.

UOL Esporte - O Brasil teve dois campeões ao mesmo tempo, em 2006. Foi uma chance de ouro perdida...
Servílio: Com o Popó e o Sertão, sem dúvida. O Sertão foi infeliz, não se cuidou e podia estar ganhando dinheiro até hoje. Para o Popó faltou um pouco de fibra, porque boxe não é só bater.

UOL Esporte - Você tem preferido se dedicar mais ao projeto social hoje em dia?
Servílio: Tenho me dedicado, mas quero voltar a fazer eventos no ano que vem. Já estou em contato com algumas empresas e tem uma turminha sedenta para galgar degraus. Se tivermos a verba para criar nossos lutadores aqui, não precisaremos levá-los para o exterior. Só vão sair do Brasil para disputar títulos mundiais. Temos condições de fazer nossos campeões aqui mesmo.