Proibida há 20 anos: eles contam como foi surfar a 'melhor onda do Brasil'

"É muito perfeita. A sensação é de você estar surfando uma das melhores ondas do mundo mesmo." Quem já pegou onda na Ilha dos Lobos num dia bom provavelmente concorda com o pernambucano Carlos Burle, 55, bicampeão mundial de ondas grandes.

A Ilha dos Lobos está localizada no litoral do Rio Grande do Sul, em Torres, a 1,8 km da costa. Em condições especiais, suas ondas se formam com um tubo tão perfeito que fica fácil entender por que ela é reconhecida, de forma quase unânime entre os surfistas, como "a melhor onda do Brasil".

O detalhe é que ela quebra praticamente sozinha há 20 anos. A prática de surfe na Ilha dos Lobos está proibida desde 2003 —e até a observação com barcos não é autorizada no local.

Motivo: o lugar é um refúgio para lobos e leões-marinhos, além de outras espécies como focas e elefantes-marinhos. A área é protegida pelo Revis (Refúgio de Vida Silvestre da Ilha dos Lobos), uma unidade de conservação federal gerida pelo ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade).

Mas, para alegria dos surfistas, o ICMBio deve iniciar estudos que podem, finalmente, liberar a prática de esportes e a visitação no local —mas com restrições, que explicaremos mais abaixo.

A onda perfeita

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Imagem: Luis Reis Fotografia

Os dois surfistas que entrevistamos não pensaram duas vezes em comparar a onda da Ilha dos Lobos com a de Teahupo'o, no Taiti, considerada uma das mais perfeitas e temidas (se não a mais) do mundo.

"É como se estivesse surfando uma onda parecida com Teahupo'o. Você sente que o fundo desaparece, fica muito oca, uma onda de slab [fundo de pedra] mesmo, só que perfeita", contou Carlos Burle, que teve a oportunidade de pegar um dia de ondas épicas na Ilha dos Lobos, em 2003, ao lado dos surfistas Rodrigo Resende, Alemão de Maresias, Pato Teixeira, Rodrigo Dornelles e Sylvio Mancusi.

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"Esse dia estava muito perfeito, superou as minhas expectativas. Eu já tinha ouvido falar, sabia que era boa, mas naquele dia lembro que todo mundo falou 'não acredito que tem esse tipo de onda aqui'. Muito perfeita mesmo", complementou Burle.

Rodrigo Dornelles, o Pedra, surfista gaúcho que mora em Torres (RS) desde os 13 anos e melhor brasileiro do Circuito Mundial de Surfe do ano de 2007, também tem boas lembranças desse dia histórico na Ilha dos Lobos.

Não parece que você está [surfando] no Brasil. Você fica em choque quando vê a onda, ela suga muito e dá um tubo enorme. A força da água impressiona e a vibe do lugar, aquela ilha, só um amontoado de pedra... É uma sensação muito boa Rodrigo Dornelles, o Pedra, surfista

Por que não é permitido surfar na Ilha dos Lobos?

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Imagem: ICMBio-MMA/ Reprodução


Em 2003, justamente após a expedição dos surfistas à Ilha dos Lobos, que rendeu uma reportagem no Fantástico (TV Globo), o local passou a receber muitos turistas. Isso fez com que o Ibama, órgão que geria a unidade de conservação na época, interditasse a prática do surfe e demais atividades no local.

Para entender a proibição, é preciso compreender a biodiversidade do local, que recebe a visita de animais conhecidos como pinípedes, mamíferos aquáticos como lobos, leões e elefantes-marinhos, além de focas.

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Esses animais frequentam todos os anos a costa brasileira, concentrando-se em apenas dois locais do Rio Grande do Sul: o Refúgio de Vida Silvestre da Ilha dos Lobos, no litoral norte gaúcho, e o Refúgio de Vida Silvestre do Molhe leste, no litoral sul do estado.

Segundo o ICMBio, em julho, o lobos e leões-marinhos saem de suas colônias na Argentina e no Uruguai rumo ao Brasil, aproveitando a corrente de águas frias das Malvinas. Os animais podem fazer uma parada de repouso no Molhe Leste ou subir direto para a Ilha dos Lobos.

Após permanecerem por lá em grande número até outubro, retornam para suas colônias reprodutivas.

Por que eles vêm para cá? "Os machos passam a época de reprodução em suas colônias e vêm para o Brasil buscar descanso e alimentação. Isso provavelmente ocorre para não haver uma disputa por alimentação com as fêmeas, que ficam nas colônias com os filhotes", explica Juliano Oliveira, analista ambiental do ICMBio e chefe do Revis.

Quando a Ilha do Lobos era liberada para o turismo e a prática de esportes como o surfe, a grande movimentação de pessoas incomodava os animais.

Vale ressaltar que, por conta do tipo de onda do local, o surfe mais praticado era o de tow-in, que usa um jet-ski para colocar o surfista na onda.

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"Quando temos uma atividade que perturba os bichos, estamos impedindo que eles descansem e se alimentem, dificultando que voltem fortes e saudáveis para disputar as áreas de reprodução no Uruguai e na Argentina", diz Juliano Oliveira.

Segundo Oliveira, em 2003, começaram a ter muitos eventos que não estavam respeitando as orientações do Ibama. "Por conta de um conflito pelo uso desordenado, optou-se por proibir as atividades."

Estudos podem liberar o surfe, mas com restrições

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Imagem: iStock

A boa notícia para os surfistas é que, em breve, o ICMBio deve iniciar estudos que podem liberar a local para o surfe. Em abril deste ano, o governo federal aprovou o plano de manejo do Revis, que servirá para disciplinar as atividades que podem ou não ser realizadas. A elaboração do plano envolveu de órgãos públicos a colônias de pescadores.

Mas não há previsão para esses estudos serem concluídos e, caso o surfe volte a ser liberado um dia, isso será para alguns eventos específicos, com autorização prévia, até por causa da legislação da Marinha.

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"O litoral gaúcho é aberto, então não é permitido o trânsito de jet-ski (necessário no surfe tow-in), a não ser em eventos", pontua Juliano Oliveira.

Outras atividades na Ilha dos Lobos

Além do surfe, o SUP (stand-up paddle), o mergulho, o caiaque e o turismo de observação embarcada estarão em avaliação e podem ser liberados após os estudos que serão feitos pelo ICMBio, em parceria com a AST e o Gemars (Grupo de Estudos de Mamíferos Marinhos do Rio Grande do Sul).

"Um deles já está adiantado, que é o turismo de observação com barcos. Estamos realizando os testes e as pesquisas para que isso possa retornar, porque é um importante segmento econômico de Torres, município muito voltado ao turismo", diz Oliveira.

O analista ambiental do ICMBio, porém, deixa claro que a prioridade diante de tudo que envolve uma possível liberação das atividades é uma só: o bem-estar dos animais.

"A gente precisa lembrar que a unidade de conservação existe para a proteção deles. As outras atividades podem ser toleradas e é importante que sejam, desde que isso não cause impacto ao meio ambiente."

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A gente não quer, por exemplo, que as atividades sejam tão desregradas ao ponto de afastar os animais ou que, por conta do impacto, venham tão poucos animais que não seja mais possível fazer o turismo de observação. Você estaria dando um tiro no pé, então é importante achar esse meio-termo Juliano Oliveira, analista ambiental do ICMBio

ONG promete ficar em cima

A Agapan (Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural), ONG fundada em 1971, dá o seu voto de confiança ao ICMBio, mas aguarda os estudos e promete monitorar o assunto.

"O ICMBio geralmente é muito sério, mas não sei quem vai encomendar e fazer o estudo. Não dá para julgar por antecipação. Tão importante quanto os estudos são os monitoramentos, não só no sentido de identificar algum dano e corrigi-lo, como também no sentido de gestão. Não adianta você proibir se ninguém fiscaliza", pontua Francisco Milanez, ex-presidente da Agapan e hoje membro do conselho superior da entidade.

Milanez teme, porém, que um dos poucos lugares do Brasil ainda protegidos por lei possa um dia voltar a ser tomado por ações desreguladas dos seres humanos.

"Aí entra um egoísmo por uma onda um pouco melhor. O litoral do Rio Grande do Sul tem 700 km, e os caras vão tomar o único lugarzinho que ainda tem alguma proteção? Mas, se um estudo mostrar que não tem problema, a gente não está fechado. A nossa meta é a vida, inclusive a humana", garante.

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"Somos favoráveis ao máximo de convívio, à reintegração do ser humano com a natureza. Os problemas são as formas... Às vezes, a nossa presença atrapalha a reprodução dos animais e outros detalhes, então temos que tomar cuidado pra não acabar prejudicando um dos únicos lugarezinhos preservados", completa.

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