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Origens

As Histórias Que Nos Trouxeram Aqui: um resgate histórico da construção de identidade de pessoas negras


Cor da pele afeta obtenção de visto para EUA, diz especialista em migração

Daniele Dutra

Colaboração para o UOL, do Rio

21/10/2022 04h00

Quando o assunto é imigrar para os Estados Unidos, a advogada brasileira Flávia Lloyd, 43, é referência para muitas personalidades no Brasil. Entre seus clientes estão Ivete Sangalo, Marcos Pigossi, Virgínia Fonseca, Zé Felipe, Carlinhos Maia, Kevinho, Neguinho da Beija Flor, entre outros. A carreira de sucesso é desdobramento das dificuldades que passou no país norte-americano, onde ela já foi imigrante ilegal e chegou a viver abaixo da linha da pobreza.

Mulher negra e, hoje, dona do próprio escritório, Flávia falou sobre a questão migratória entre Brasil e EUA durante sua participação em "Origens - As histórias que nos trouxeram aqui", evento promovido por Ecoa. "Existe uma diferença entre pessoas negras e brancas, isso desde a entrevista até o visto. Quem falar que não, é porque não sabe o que a gente passa. Sempre perguntam "por que você se veste tão bem para viajar, Flávia? Porque eu sou negra. É um fato. Não importa que eu tenha passaporte americano, não importa que eu seja uma profissional, que eu tenha doutorado. Essa é uma realidade na hora de conseguir o visto, conseguir uma bolsa de estudos. Então a cor afeta sim", disse.

Flávia Lloyd participou de Origens diretamente da Califórnia, onde mantém uma das sedes de seu escritório especializado em imigração. À apresentadora do evento, a jornalista Semayat Oliveira, ela também falou dos momentos difíceis que passou até o sucesso na carreira.

Flávia chegou nos EUA, quando tinha 20 anos, por meio de um convênio com a USP (Universidade de São Paulo), onde era estudante. No início ela tentava lidar com o choque cultural do dia a dia enquanto trabalhava cuidando de crianças para arcar com as despesas do intercâmbio. A pretensão era de ficar por apenas um ano, mas já se passaram 23 desde que saiu de Santos (SP), onde nasceu.

A advogada brasileira Flávia Lloyd, 43, e o filho mais velho. - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
A advogada brasileira Flávia Lloyd, 43, e o filho mais velho.
Imagem: Arquivo pessoal

Logo nos primeiros anos em que esteve no país, Flávia engravidou e a situação financeira se complicou. Um dos piores momentos longe de casa foi quando precisou dormir em abrigos com o filho recém-nascido. Nesta época, ela também não tinha a documentação regularizada no país, complicando as tentativas de conseguir um emprego que arcasse com todas as despesas que tinha.

"Todo dia você vê uma família se formando e outra se rompendo, e o brasileiro é muito enraizado, muito conectado com a família. O imigrante passa por momentos muito difíceis. Você pode ser feio, bonito, magro, gordo, independente disso, você continua sendo imigrante", conta.

Dos subempregos até a advocacia, Flávia diz que foi aproveitando as oportunidades que a vida lhe proporcionou. Depois de formada em direito ela também se tornou professora de Direito Imigratório na Universidade de Irvine. "Uma coisa que existe neste país [EUA] é a mobilidade social", diz.

Ao mesmo tempo, Flávia conta que ainda é difícil encontrar a sua "caixinha" no país. Se por um lado a sociedade estadunidense não a vê como latina, já que ela é uma mulher negra; a comunidade negra não a reconhece como uma par porque ela é uma mulher latina, ou seja, brasileira. "Aqui tem uma mobilidade social que você não tem no Brasil, mas quando consegue se estabelecer profissionalmente, você não consegue se enquadrar nessa caixinha", explicou.

A criação dos filhos longe de casa

Além do filho primogênito, que hoje tem 21 anos, Flávia tem um filho de dois anos e é casada. A criação dos filhos longe do país de origem sempre foi um desafio e ela também precisou se adaptar culturalmente.

"Adoro morar aqui, adoro a cultura, mas o povo é mais distante. O Lucas mora na Flórida e está se formando na faculdade. Pensei que o meu filho iria voltar para a Califórnia quando se formasse, mas ele já quer fazer um mestrado e abrir um escritório lá. Então, se Maomé não for à montanha, a montanha vai à Maomé", brincou a advogada.

A questão racial também é presente nas interações com eles, que cresceram ouvindo da mãe sobre os perigos de ser negro nos Estados Unidos.

"Tive que explicar para o meu filho desde novo que ele não podia pular o muro se esquecesse a chave de casa porque alguém poderia chamar a polícia e atirar nele. Eles atiram em você primeiro, depois fazem as perguntas. Então essa é uma questão muito difícil para o negro aqui, para o latino"
Flávia Lloyd, advogada

A falta de internet em 1999, quando chegou nos EUA, acabou impedindo que Flávia conseguisse manter um contato mais próximo e rotineiro com a família. Ao mesmo tempo, anos depois, foi também a tecnologia que a possibilitou de se reaproximar dos parentes que ficaram na cidade onde nasceu.

"Meus pais sempre apoiaram minhas loucuras, desde quando saí de Santos para São Paulo e quando decidi que iria para os Estados Unidos. Eu lembro que no aeroporto meu pai falou que eu não voltaria mais. Dito e feito! Ele estava certo. Já minha mãe achava que de fato eu voltaria depois de um ano. Acho que meus pais não achavam que eu iria levar essa independência tão a fio, mas Graças a Deus que essa independência foi construída, e foi repassada para o meu filho
Flávia Lloyd, advogada

Origens - As histórias que nos trouxeram aqui

Promovido por Ecoa, Origens está em sua quarta temporada. O evento deste ano teve como mote "As histórias que nos trouxeram aqui", e recebeu ao longo desta terça-feira (18), pessoas, entre celebridades e ilustres anônimos, que contaram sobre como buscaram respostas sobre o seu passado ou agiram para transformar, cada qual à sua maneira, seus núcleos familiares.

Também participaram do evento a poeta e compositora Bell Puã e a humorista e apresentadora dos programas Splash Show e Otalab, do UOL, Yas Fiorelo. A apresentação e mediação dos encontros ficou por conta da jornalista Semayat Oliveira.