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Em escola-ateliê, colocar a mão na massa é caminho para ajudar a comunidade

A artista plástica Elisa Bracher, fundadora do Instituto Acaia - Divulgação
A artista plástica Elisa Bracher, fundadora do Instituto Acaia Imagem: Divulgação

Lígia Nogueira

Colaboração para Ecoa, em São Paulo

02/01/2022 06h00

Quando abriu seu ateliê de artes plásticas na Vila Leopoldina, em São Paulo, há pouco mais de 20 anos, Elisa Bracher não tinha ideia de que o seu envolvimento com a comunidade ao redor mudaria a sua trajetória — e a de muitas outras pessoas. Foi investindo no fazer manual como caminho de crescimento pessoal e na atenção à saúde de estudantes e famílias que ela acabou criando o próprio modelo de empreendedorismo social que já atendeu mais de 2.000 pessoas, entre crianças, adolescentes e adultos.

Logo após se formar em artes plásticas na Faap (Fundação Armando Álvares Penteado), em São Paulo, Elisa começou a carreira de artista plástica trabalhando com gravuras, sempre de grandes dimensões e sem cópias. Suas primeiras esculturas eram linhas finas, mas foram ganhando corpo: ela começou a trabalhar com pedra e madeira, usando serras, muncks (espécies de guindaste) e ferramentas industriais. O vaivém dos caminhões que transportavam seus trabalhos do ateliê, que ficava em um bairro residencial, acabou incomodando os vizinhos.

Foi procurando um espaço maior para trabalhar que Elisa chegou à Vila Leopoldina, na zona oeste da capital paulista, onde havia grandes galpões e o trânsito dos veículos de carga não era novidade por causa do Ceagesp (Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo).

Ela conta que quando chegou ao bairro, em 1997, não tinha muita relação com a área, nem sabia da existência das comunidades da região, como o conjunto habitacional Cingapura Madeirite, a Favela do Nove e a Favela da Linha. Um dia, descendo a rua de carro na companhia do filho mais velho, viu uns garotos jogando capoeira no canteiro da avenida em frente ao Ceagesp e teve a ideia de convidá-los para conhecer o ateliê.

"A partir daí, fiz contato com uma pessoa que tinha um trabalho social nas comunidades. Algum tempo depois, um grupo de meninas começou a frequentar meu ateliê uma vez por semana para fazer atividades de marcenaria. Aos poucos, vieram meninos e as oficinas foram se ampliando, com arte, culinária, música", diz Elisa.

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Instituto Acaia lança livro que relata o trajeto percorrido no trabalho educativo com crianças das comunidades da Vila Leopoldina
Imagem: Divulgação

A ideia foi crescendo e o grupo de crianças foi aumentando. "Fui chamando gente para me ajudar. Demorei uns três anos para perceber que aquilo tinha vindo para ficar. Então resolvemos criar o Instituto Acaia para abrigar esse trabalho, que continuou evoluindo e, em 2017, tomou a forma de uma escola de Educação Infantil e Ensino Fundamental — o ateliescola acaia — que atende 200 crianças das favelas da Vila Leopoldina."

Elisa está diretamente envolvida tanto no ateliescola, do qual é uma das diretoras, quanto no Instituto Acaia, cujo conselho ela integra. No primeiro, trabalham 118 pessoas. Além dele, o Instituto abriga dois outros projetos socioeducativos da família: o Acaia Sagarana, um curso que prepara jovens alunos de destaque na rede pública para prestar vestibular em faculdades de excelência; e o Acaia Pantanal, que mantém uma escola gratuita para crianças ribeirinhas da região da Serra do Amolar, no Pantanal Sul (MS), além de ações socioambientais.

Nesses 20 anos de atuação, muitas histórias marcaram a vida da artista e empreendedora social. Algumas delas estão reunidas no livro "Desalojados", cujo lançamento marca as duas décadas de atuação do projeto.

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O Acaia Pantanal mantém uma escola gratuita para crianças ribeirinhas da região da Serra do Amolar, no Pantanal Sul (MS)
Imagem: Divulgação

Na obra, Elisa conta a história de cinco irmãos que eram seus alunos e que perderam a mãe — e de como foram ajudados a encontrar uma solução jurídica para que pudessem ficar juntos. "Era o que eles queriam, já que, nesses casos, eles podem ser separados para a adoção", diz.

Elisa adianta que o leitor pode, em primeiro lugar, esperar uma história real, cheia de percalços e frustrações, mas também de descobertas, e que fala bastante da realidade que as pessoas vivem nas favelas. "Mas a ideia não foi apenas contar como o trabalho começou e como fomos entendendo nosso público; foi, principalmente, falar de como criamos no Acaia, à base de muita tentativa e erro, um modelo próprio de trabalho, que eu acredito ser replicável em iniciativas do mesmo tipo."

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Elisa Bracher: 'Criamos no Acaia, à base de muita tentativa e erro, um modelo próprio de trabalho, que eu acredito ser replicável em outras iniciativas'
Imagem: Divulgação

"Desalojados" é o número zero da série Cadernos Acaia, uma coleção de publicações que vão, a partir de 2022, apresentar os fundamentos do modelo de trabalho, como o fazer manual como caminho de crescimento pessoal, a escuta psicanalítica adaptada a situações do dia a dia e a atenção à saúde de alunos e famílias.

Atendimento de saúde na pandemia

Durante a pandemia, o Instituto Acaia montou, em parceria com a Votorantim e a Beneficência Portuguesa, um posto de atendimento dentro da Associação dos Moradores para prestar assistência à população que mora no conjunto habitacional Cingapura Madeirite e nas comunidades da Favela do Nove e da Favela da Linha — em torno de 6.500 a 7.000 pessoas no total.

"O serviço foi criado em maio de 2020 numa tentativa de mitigar os impactos da covid-19 junto à população. O centro mantinha um médico e um enfermeiro de plantão para atender moradores com sintomas de covid, encaminhar para hospitais quando necessário, esclarecer dúvidas, orientar etc."

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Instituto Acaia já atendeu mais de 2.000 pessoas, entre crianças, adolescentes e adultos
Imagem: Divulgação

Até agosto daquele ano, a iniciativa funcionou a semana inteira, de segunda a sábado. A partir daí, passou a atender duas vezes por semana. Os organizadores tiveram apoio do Observatório Leopoldina, da UBS Parque da Lapa e do PS da Lapa. "Para nós, foi muito importante integrar esse esforço conjunto, que garantiu a essa população algum acolhimento, além de informação de qualidade, no cenário catastrófico de antes da vacinação, com hospitais lotados, curva de mortes subindo, políticas públicas descoordenadas e muita desinformação", diz Elisa.