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Sem poder ir ao circo, ele criou espetáculo itinerante para comunidades

Abel Domingues, criador do teatro de bonecos itinerante Cabeça de Coco - Divulgação
Abel Domingues, criador do teatro de bonecos itinerante Cabeça de Coco Imagem: Divulgação

Lígia Nogueira

Colaboração para Ecoa

12/12/2021 06h00

Abel Domingues fazia trabalhos comunitários como Papai Noel nas periferias de Curitiba (PR) quando teve a ideia de levar diversão e cultura para as crianças em situação de vulnerabilidade. De tanto observar a vida nas comunidades, decidiu criar um teatro de bonecos itinerante com personagens feitos a partir da reutilização de material reciclado. Nascia, em janeiro de 2005, o projeto Cabeça de Coco.

"Tendo em vista que o público seriam os moradores das comunidades carentes, pensei que o melhor transporte seria a bicicleta, um veículo sustentável e não poluente, cuja simplicidade não iria agredir a realidade em que viviam aquelas pessoas", conta o artista e gerente de logística curitibano de 52 anos.

Os bonecos são todos confeccionados com materiais reciclados: os olhos são tampinhas de embalagens de xampu, o nariz é feito com a tampa do esmalte, as orelhas ganham forma com tampas de pasta de dente, os cabelos são feitos com fios de lã e as roupas, de trapos velhos. A cabeça do personagem é feita com a casca do coco seco, o que deu origem ao nome do projeto. Garrafas PET, bolinhas de gude quebradas e tantos outros materiais que seriam descartados no ambiente são usados no trabalho.

A ideia da reutilização, conta Abel, é que as crianças tenham condições de criar seus próprios bonecos. "Se nós oferecêssemos um projeto de pintura em tela, elas não teriam condições financeiras de adquirir o material e não conseguiriam participar", diz. Os produtos usados são recolhidos nas ruas dos bairros das cidades paranaenses por onde ele já passou, como São José dos Pinhais, Palmeira, Irati e Piraquara, por exemplo.

Abel Domingues - Divulgação - Divulgação
O artista Abel Domingues: 'Por muitos anos pedalei uma bicicleta cargueira; hoje eu utilizo uma bike com marchas que comprei com o dinheiro de um prêmio'
Imagem: Divulgação

As apresentações, sempre gratuitas e voluntárias, acontecem em escolas públicas, hospitais, aldeias indígenas e comunidades carentes. Os espetáculos são na maioria das vezes improvisados e as histórias acontecem de acordo com a interação das crianças. No início do projeto, Abel contava com a ajuda do filho, Gabriel, que tinha apenas cinco anos e participava dos eventos com o pai. Depois de 13 anos, o garoto se tornou adulto, começou a trabalhar e hoje não o acompanha mais, fazendo apenas algumas participações pontuais.

"Um dia vou ser o dono do circo"

"Venho de uma família muito simples, e quando eu tinha sete anos a escola promovia alguns eventos para levar os alunos ao circo, ao parque, ao museu e a outras atrações. Porém, para que o aluno pudesse participar do passeio, a escola exigia que ele levasse uma prenda (um sabonete ou uma lata de sardinha), que seria o ingresso para entrar no ônibus que levaria as crianças.

Infelizmente eu não tinha condições de levar as prendas, esses itens eram artigos de luxo na minha casa. Minha mochila da escola era um pacote de arroz de cinco quilos, eu não tinha o uniforme escolar e nem tênis — o chinelo de dedo era preso com um prego e por causa disso muitos vezes sofri bullying dos outros garotos.

Abel Domingues - Divulgação - Divulgação
Abel Domingues cria bonecos confeccionados com materiais reciclados
Imagem: Divulgação

O fato de não poder ir aos passeios se repetiu por vários anos. Presenciei várias vezes o ônibus fechando as portas com seus corredores abarrotados de crianças sorrindo com destino ao circo, e eu e mais umas quatro ou cinco crianças que também não podiam levar a prenda voltávamos para casa com os olhos cheios de lágrimas sem entender direito o porquê."

Apesar da pouca idade, cresci com uma vontade imensa de mudar aquela realidade. Eu pensava: 'Um dia vou melhorar de vida e vou mudar a vida dessas crianças'. E dizia para mim mesmo que 'um dia eu vou ser o dono do circo, e no meu espetáculo não haverá ingresso, todos vão poder assistir de graça'.

Do Papai Noel aos bonecos sustentáveis

Aos 15 anos, Abel começou a se vestir de Papai Noel para visitar crianças em hospitais e comunidades. Nos três primeiros anos de trabalho voluntário não havia nem bala para distribuir aos pequenos, mas a presença do Papai Noel já era capaz de despertar sorrisos. Com o passar do tempo, o artista começou a trabalhar e passou a comprar balas e doces para distribuir — e assim seguiu por duas décadas.

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Abel Domingues com as crianças da Aldeia Araçaí
Imagem: Divulgação

Só que o Papai Noel aparecia apenas no Natal e obrigatoriamente levava presentes. Foi aí que Abel teve a ideia de criar um projeto de teatro de bonecos que pudesse ir além das datas comemorativas. "Assim eu poderia levar alegria para as crianças independentemente da minha condição financeira", diz.

Apesar da ausência de qualquer patrocínio ou apoio financeiro, o Cabeça de Coco completou 16 anos em 2021. Nesse meio-tempo, Abel coleciona muitas histórias para contar. Uma delas aconteceu quando o artista pedalou 36 quilômetros a partir de sua casa para atender uma escola na região metropolitana de Curitiba. No caminho, encontrou um catador de papel que levava seu carrinho cheio de material recolhido e três filhos com idades entre cinco e nove anos.

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Abel Domingues e seu teatro itinerante: 'Quando penso nas crianças, minhas energias se renovam a cada pedalada'
Imagem: Divulgação

Ao se deparar com a cena, decidiu parar a bike e realizar um pequeno espetáculo improvisado para as crianças. Pediu permissão ao pai e improvisou um pano preto entre o carrinho de papelão e uma placa de sinalização de trânsito. Enquanto isso o pai retirou as crianças que estavam em cima das caixas, colocou-as sentadas no chão e o teatro começou. "Creio que foram menos de cinco minutos, mas esse foi um dos maiores espetáculos da minha vida", diz Abel.

"Como eu tinha um compromisso numa escola e havia 250 crianças me esperando, comecei a desmontar rapidamente o cenário quando me deparei com o pai das crianças chorando. Entre lágrimas, ele me disse que nunca havia ido a um teatro. Num piscar de olhos lembrei da minha infância e do meu sonho de 'levar o circo até eles'", recorda.

"Antes de partir, recebi um abraço do pai como forma de agradecimento, enquanto as crianças sorriam. Segui meu destino e apresentei o espetáculo para aquelas outras 250 crianças, mas somente à noite, deitado ao lado da minha esposa, pude entender qual era a minha verdadeira missão naquele dia."