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Em documentário, capital do jeans está entre exploração e sonho de Carnaval

Cartaz do filme "Estou me guardando para quando o carnaval chegar" - Divulgação
Cartaz do filme "Estou me guardando para quando o carnaval chegar" Imagem: Divulgação

Thaís Regina

Colaboração para Ecoa, de São Paulo

20/08/2021 06h00

O cineasta Marcelo Gomes foi ao agreste na esperança de que o espaço o devolvesse ao tempo que passara com o pai na infância, memória que retém um valor afetivo para o diretor e roteirista recifense. No entanto, durante sua investigação emocional, Gomes deparou-se com uma cidade devorada por si mesma, da terra da felicidade à capital do jeans. "Estou me guardando para quando o carnaval chegar" (2019) é um tipo de cinema valioso, bem sucedido na sua pesquisa de personagens cativantes, na sensibilidade das entrevistas e na reflexão que promove ao motrar o que o mercado de trabalho tem se tornado. É impossível não pensar em quem nós estamos nos tornando.

Toritama é um espelho difícil de encarar, mas impossível de resistir. Boa parte da população abandonou as grandes fábricas e começou, no fundo do quintal ou na garagem, uma produção própria de jeans — curiosamente conhecidas como "facções" na região. Trabalham das cinco ou sete da manhã até às dez da noite e, no fim do dia, orgulham-se de serem seus próprios patrões. Chama atenção o paradoxo entre a vulnerabilidade das pessoas na cadeia de produção com sua satisfação no trabalho e o consumo compulsivo de jeans.

Os personagens do documentário são didáticos sobre como o neoliberalismo força as pessoas a um estado de exploração extrema sob o véu de uma maior independência. Há um jogo complexo em Toritama, no qual o desejo dos sujeitos é construído em torno do trabalho compulsório. A agonia se acentua a cada personagem que não reconhece este problema. Longe da lingugaem complicada da academia, Gomes deixa que a política seja vista por debaixo da pele de seus entrevistados, sua gerência de tempo, seus sonhos, as músicas que ouvem e a vontade de partir no Carnaval.

O som é parte fundamental do documentário. Da cacofonia das máquinas de costura de jeans ao trap "Sonhei que eu tava rico" ou "Vida Loka, Pt. 2" dos Racionais MC's, a trilha se faz presente durante toda a narrativa. Gomes convida o público para o exercício de observar as mãos trabalharem na máquina de costura caseira. De repente, um alívio: "Decido cortar o som", diz Marcelo. "O barulho ensurdecedor das máquinas me causa ansiedade. Agora, essa repetição desse movimento que me causa angústia", completa enquanto nos convida a observar e sentir. A abertura do filme com paisagens agrestes e outdoors ao som de Bach não fica para trás, tampouco a essência da rotina que o time de documentaristas conseguiu captar.

"Estou me guardando para quando o carnaval chegar" (2019) apoia-se muito na observação do tempo. "Eu sou um fiscal do tempo alheio", dispara Gomes logo no início. Fatalmente, uma imersão na cidade que não para de trabalhar provoca no diretor uma reflexão sobre seu próprio ramo. O Carnaval é a catarse de Toritama. Lógico, é uma catarse nossa, brasileira, mas em uma cidade que (quase) extinguiu o ócio, o desejo de libertar-se é medido por outras réguas.

No município do interior de Pernambuco, as pessoas vendem as próprias máquinas de costura, televisões, geladeiras, tudo que puderem, para viajar durante o Carnaval e ver o mar. Uma sábia escolha da equipe é ficar em Toritama durante o feriado nacional, saboreando o vazio da capital do jeans, e entregar uma filmadora para uma família entrevistada, cujos vídeos foram inseridos no filme. É um arquivo bonito, dá ênfase ao tom sensível da trama, e revela uma vida possível, feliz. Marcelo Gomes encontra um problema central da nossa sociedade em um cenário muito específico e curioso. "Estou me guardando para quando o carnaval chegar" é uma dança fora do compasso entre sujeito e desejo — por isso, um filme profundamente envolvente e fundamental.

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