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"Hierarquia baseada no gênero não existia entre os iorubás", diz nigeriana

A socióloga nigeriana Oyèrónké Oyewùmí - Divulgação
A socióloga nigeriana Oyèrónké Oyewùmí Imagem: Divulgação

Juliana Domingos de Lima

De Ecoa, em São Paulo (SP)

28/05/2021 06h00

As desigualdades de gênero são reais e mensuráveis nas sociedades de hoje. Há papéis sociais distintos designados para mulheres e homens e estruturas que tentam assegurar esse rígido binarismo.

Mas terá sido sempre assim? No livro "A Invenção das Mulheres", a socióloga nigeriana Oyèrónké Oyewùmí argumenta que, antes da colonização, não havia hierarquia social baseada no gênero em iorubalândia, região da África Ocidental ocupado pelos iorubás, localizada em sua maior parte no território atual da Nigéria.

Mais do que isso, ela afirma que a ideia de "mulher" como um grupo que compartilha os mesmos interesses, desejos ou posição não existia naquela sociedade.

Marco dos estudos de gênero, a pesquisa de Oyewùmí foi publicada pela primeira vez em 1997, nos Estados Unidos. Com sua chegada aos leitores brasileiros em abril pela editora Bazar do Tempo, a socióloga falou a Ecoa sobre a organização social iorubá, críticas ao feminismo ocidental e a possibilidade de categorias de gênero mais fluidas.

1 - Wikimedia Commons - Wikimedia Commons
Trupe iorubá de crianças após apresentação escolar na Nigéria
Imagem: Wikimedia Commons

Ecoa - O que significava ser mulher na sociedade iorubá pré-colonização?

Oyewùmí - Meu argumento em "A Invenção das Mulheres" é que as categorias que se tornaram operacionais na vida contemporânea ou moderna não são as mesmas que a sociedade iorubá e muitas sociedades africanas usavam antes, e que, mesmo agora, essas categorias devem ser questionadas.-

Isso ainda faz parte da vida cotidiana iorubá: muitas de nossas categorias não são ligadas ao gênero, o que significa que se aplicam a homens, mulheres, a todos. Portanto, a questão tem sido, para mim: o que queremos dizer com a categoria mulher? E essa questão permanece, porque se tivermos um olhar afrocentrado, centrado na cultura iorubá e voltado para o mundo, o que essas categorias significam?

Quando falamos "pré-colonização", as pessoas pensam que é há muito tempo atrás. Mas quando eu era criança, ouvia pessoas chamarem minha mãe de "esposa", de "marido", de "Aboru", ou seja, meu irmão mais novo e "Egbon", meu irmão mais velho. Na época, não havia nada de confuso nisso para mim.

As categorias variam de acordo com quem está falando e com o relacionamento entre as pessoas, a situação. Essas coisas ainda acontecem. Por exemplo, a esposa do meu irmão também me chama de marido. A tradução da categoria iorubá "oko" para marido pode ser incorreta. Porque o marido em inglês tem que ser homem, alguém que tem pênis. Mas no iorubá é uma categoria social, essa é a chave. Não é uma categoria biológica ou de gênero. Portanto, as mulheres que se casam com membros da família, com seu pai ou seus irmãos, olham para todos os membros da família, sejam homens ou mulheres, como maridos.

Homens e mulheres tinham papéis distintos, atrelados a seu gênero?

Não havia nenhuma ocupação, nenhum papel social que tanto anamachos quanto anafêmeas [termos criados pela autora no livro para marcar a diferença em relação à carga de significado associada às palavras mulher e homem nas sociedades ocidentais] não pudessem desempenhar.

Na literatura sobre gênero, que é ocidental, a maternidade é assumida como um papel de gênero. Mas na sociedade iorubá, como em qualquer outro lugar, mulheres, fêmeas, são quem têm bebês e isso não resultou em normas para o masculino e o feminino.

A diferença entre a sociedade iorubá e o ocidente é a maneira como eles veem o corpo. No Ocidente, o corpo é central para as categorias sociais. É por isso que existe racismo e machismo. Na sociedade iorubá, o corpo não está no centro da categorização social.

Portanto, não havia regra, havia mulheres "obá", monarcas, havia mulheres sacerdotes, mulheres caçadoras. O mais importante sobre a sociedade iorubá e muitas sociedades africanas — e estamos vendo isso mudar agora — é que nossas categorias sociais são baseadas no comum, no coletivo. Sua família, sua linhagem é mais importante do que se você é homem ou mulher.

Assim, se a caça é a vocação de sua família, você, como uma mulher dessa família, tem acesso e oportunidade de ser uma caçadora bem antes de um homem de uma família que não é de caçadores. Temos que entender o contexto mais amplo e as regras da comunidade para compreender como os africanos imaginam o mundo — é sempre sobre o coletivo.

Como você descreveria as relações de gênero na Nigéria de hoje?

As pessoas ainda usam essas categorias na vida cotidiana iorubá, em certos lugares da Nigéria. No entanto, em um Estado colonial de supremacia branca e dominância masculina na época do neoliberalismo, na qual o capitalismo está tão enraizado, são estas as grandes forças que estão moldando a forma como as pessoas vivem.

Uma das principais formas pelas quais a colonização realmente impactou na família é a divisão sexual do trabalho. Entre as elites, os homens foram privilegiados com empregos e, inicialmente, as mulheres não receberam empregos formais ou cargos públicos.

O que vejo sobre o impacto da colonização é a forma como o capitalismo colonial tomou os recursos da sociedade — é claro, os colonizadores pegaram sua própria quantidade de recursos e o que sobrou foi entregue aos homens. E as mulheres ficaram sem recursos. Ainda assim, foram elas que ficaram com a maior parte do trabalho, de criar os filhos, as comunidades, de prover.

Podemos falar em feminismo africano?

Hoje em dia, algumas pessoas se sentem mais confortáveis em se dizerem feministas africanas, mas o que sempre foi contestado é que, no feminismo ocidental, as africanas são representadas de forma deturpada. O racismo do feminismo ocidental coloca as mulheres africanas abaixo de todos.

Mas uma distinção deve ser feita entre o substantivo feminismo e o adjetivo feminista. O termo feminismo geralmente se refere a um movimento social americano e europeu historicamente recente. O feminismo com essa designação tornou-se um projeto político global, mas o adjetivo feminista tem um alcance mais amplo e não precisa ser confinado pela história. Na verdade, ele descreve uma gama de comportamentos que indicam a agência feminina e a autodeterminação.

Em muitas sociedades tradicionais africanas, uma certa medida de autodeterminação era um valor, era praticada como uma coisa natural e como um modo de vida para todos os adultos, homens e mulheres. Na década de 1980, Filomena Steady, uma das principais estudiosas sobre a mulher africana, chamou a atenção para esses valores africanos ao escrever sobre a África como o berço original dos princípios feministas. Nesse sentido, então, o feminismo africano é uma tautologia, porque o feminismo é a África!

Mas há esse outro feminismo, que é um projeto global que emana do ocidente, das mulheres ocidentais, que pensam que têm algo a distribuir para o resto do mundo. E desse modo o feminismo se alinha com noções supremacistas brancas de modernidade, na qual os colonizadores distribuem para o mundo os frutos da modernidade. E como sempre digo aos meus alunos, que frutos eles trouxeram? O genocídio?

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25.mai.2015 - Um pedestre passa por uma máscara de Zangbeto, conhecido como um tradicional guardião da noite na religião iorubá em Benin e no Togo
Imagem: Tino Soriano/National Geographic Creative

O que você diria que mudou na academia e no mundo desde a primeira publicação desse livro, em 1997?

Eu sempre disse que as ideias do livro estavam muito à frente de seu tempo. Não do tempo iorubá, mas do tempo acadêmico ocidental. Então o que eu vejo agora, com algumas das discussões sobre transgeneridade e gênero-fluido é alguma abertura para a ideia de que o gênero não deveria ser tão rígido.

Mas meu entendimento das ideias ocidentais sobre gênero é que ele é sempre binário. Portanto, sem o binarismo, ainda é gênero? Toda a definição de gênero surgiu do binarismo. Sabemos que a biologia e a natureza, o que chamam de dimorfismo sexual, também é ideológico porque agora conhecemos a intersexualidade. Então mesmo dizer que a ideia do binarismo surgiu da biologia é problemático.

Hoje em dia nos Estados Unidos, pelo menos na academia, quando as pessoas te escrevem um e-mail ou quando você as conhece, elas dizem seus pronomes preferenciais. Mas em muitas de nossas línguas africanas, não há pronomes generificados. Lembro-me de ter ido à última Conferência de Estudos Africanos, antes da covid, e quando nos registramos havia um campo com "seu pronome preferencial". E um colega disse: "Somos africanos. Nunca tivemos pronomes com gênero!"

O que você gostaria que os leitores brasileiros aprendessem com seu livro?

Sempre penso no Brasil e em Cuba — e tenho certeza que há outros lugares na América do Sul —, como um lugar onde os orixás encontraram um lar. Espero, então, que o meu livro contribua para expandir, para agregar mais informações e conhecimentos aos brasileiros sobre a origem dos orixás, sobre o contexto de onde vieram. E, no processo, entender o contexto nigeriano como não tão diferente do brasileiro, e que deve haver um trabalho conjunto para ter uma noção holística e plena das nossas culturas, do seu dinamismo e do fato de que são tradições vivas.