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Bisneta de Lobato adaptou trechos racistas de obra; veja comparação

Cleo Monteiro Lobato, bisneta do autor de "Reinações de Narizinho" - Arquivo pessoal
Cleo Monteiro Lobato, bisneta do autor de "Reinações de Narizinho" Imagem: Arquivo pessoal

Juliana Domingos de Lima

De Ecoa, em São Paulo

12/03/2021 04h00

"Narizinho Arrebitado" é o primeiro conjunto de histórias que compõem o livro "Reinações de Narizinho", de Monteiro Lobato, publicado pela primeira vez em 1931. Um clássico da literatura infantil brasileira, a obra foi tema de muita discussão nos últimos anos por conter frases de teor racista.

Como sugere o título, a história acompanha a menina Narizinho em uma aventura pelo reino das Águas Claras, que fica debaixo d'água e é governado pelo príncipe Escamado. Há na narrativa uma série de alusões pejorativas à identidade racial de tia Nastácia, mulher negra que cozinha, cuida das crianças e das tarefas domésticas no Sítio do Picapau Amarelo.

A propósito do racismo na obra de Lobato e de registros de seu posicionamento frente à questão, há muito debate sobre qual seria a solução mais adequada para lidar com esse aspecto de sua produção literária e biografia. O melhor é manter os trechos de cunho racista, acrescentando notas que os contextualizem? Suprimi-los, eximindo leitores ainda muito jovens do contato com esse tipo de manifestação? Ou simplesmente esquecer o autor?

Em 2020, uma das descendentes do escritor optou pelo segundo caminho. Cleo Monteiro Lobato decidiu organizar e traduzir para o inglês uma versão "atualizada" de "Narizinho Arrebitado", primeira história presente no livro "Reinações de Narizinho".

O livro adaptado foi publicado pela Underline Publishing no Brasil e nos Estados Unidos, onde a bisneta do escritor reside desde a década de 1990. Até o ano que vem, as demais histórias do livro também devem ser lançadas separadamente pela editora, com o mesmo tipo de adaptação.

A edição do texto de Lobato é polêmica e seus prós e contras já foram apresentados por Ecoa. Para Cleo Monteiro Lobato, as mudanças são necessárias para que o bisavô continue sendo lido pelas novas gerações.

"A gente evoluiu como sociedade, não dá pra parar no tempo. Monteiro Lobato escreveu entre 1920 e 1930, a última revisão [da obra] que ele fez foi em 1947 e de lá pra cá a evolução foi muito grande", disse a bisneta do autor a Ecoa. "Quem quiser ler a obra original pode escolher. Mas eu gostaria de atingir um novo público, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos. Realmente acho que tem que se olhar pra frente, Monteiro Lobato era um cara à frente do seu tempo, e eu acho que se ele estivesse vivo ele estaria fazendo essa revisão."

O autor foi membro da Sociedade Eugênica de São Paulo e, segundo cartas tornadas públicas em 2010, elogiou a Ku Klux Klan, seita supremacista branca que perseguiu e assassinou pessoas negras nos EUA e continua em atividade até os dias de hoje.

Antes e depois

Segundo a organizadora Cleo Monteiro Lobato, a revisão enfocou principalmente a questão racial. Mais do que retirar as alusões de cunho racista a tia Nastácia, ela decidiu mudar o status da personagem. "A adaptação é mínima, mas pega o personagem da tia Nastácia e a coloca num pé de igualdade social com Dona Benta. É essa a questão. Ela não é mais empregada", disse. De "sinhá", termo que remete à proprietária de uma pessoa escravizada, Dona Benta passou a "amiga de infância".

Após entender que algumas alterações estavam ficando "exageradas", Cleo Monteiro Lobato decidiu voltar atrás.

"Nereide [Santa Rosa, editora da Underline Publishing] e eu discutimos muito, porque a hora em que se começa a modificar, por que não mudar a roupa do sapo? [em uma passagem, Narizinho e o príncipe Escamado vestem com roupas de mulher um sapo que estava dormindo para fazer uma brincadeira]. Vai ofender, é bullying, eles falam em chutar o sapo. Mas daí a gente começou a retirar tanta coisa que eu falei 'não dá'", disse a organizadora.

Ecoa teve acesso à nova edição de "Narizinho Arrebitado" e a comparou com a obra original. Os trechos escritos por Monteiro Lobato aparecem primeiro e a versão editada em seguida:

  1. Como era - Na casa ainda existem duas pessoas -- tia Nastácia, negra de estimação que carregou Lúcia em pequena, e Emília, uma boneca de pano bastante desajeitada de corpo.
    Como ficou - Na casa ainda existem duas pessoas -- tia Nastácia, amiga de infância de Dona Benta que carregou Lúcia em pequena, e Emília, uma boneca de pano bastante desajeitada de corpo.
  2. Como era - "Além da boneca, o outro encanto da menina é o ribeirão que passa pelos fundos do pomar. Suas águas, muito apressadinhas e mexeriqueiras, correm por entre pedras negras de limo, que Lúcia chama as 'tias Nastácias do rio'"
    Como ficou - "Além da boneca, o outro encanto da menina é o ribeirão que passa pelos fundos do pomar. Suas águas, muito apressadinhas e mexeriqueiras, correm por entre pedras negras de limo."
  3. Como era - "A velha, furiosa, ameaçou-a de lhe desarrebitar o nariz da primeira vez em que a encontrasse sozinha.
    -- E eu arrebitarei o seu, está ouvindo? Chamar vovó de coroca! Que desaforo!
    Como ficou - "-- E eu arrebitarei o seu, está ouvindo? Chamar a vovó e a tia Nastácia de corocas! Que desaforo!"
  4. Como era - "Dona Carochinha botou-lhe a língua, uma língua muito magra e seca, e retirou-se furiosa da vida, a resmungar que nem uma negra beiçuda."
    Como ficou - "Dona Carochinha botou-lhe a língua, uma língua muito magra e seca, e retirou-se furiosa da vida, a resmungar."
  5. Como era - "Tamanho susto levou dona Benta, que por um triz não caiu de sua cadeirinha de pernas serradas. De olhos arregaladíssimos, gritou para a cozinha:
    -- Corra, Nastácia! Venha ver este fenômeno...
    A negra apareceu na sala, enxugando as mãos no avental.
    -- Que é, sinhá? -- perguntou.
    -- A boneca de Narizinho está falando!...
    A boa negra deu uma risada gostosa, com a beiçaria inteira.
    -- Impossível, sinhá! Isso é coisa que nunca se viu. Narizinho está mangando com mecê."
    Como ficou - "Tamanho susto levou dona Benta, que por um triz não caiu de sua cadeirinha de pernas serradas. De olhos arregaladíssimos, gritou:
    -- Corra, Nastácia! Venha ver este fenômeno...
    Ela apareceu na sala e perguntou:
    -- O que houve?
    -- A boneca de Narizinho está falando!...
    Nastácia deu uma risada gostosa.
    -- Impossível! Isso é coisa que nunca se viu. Narizinho está mangando com mecê."

Penso que a defesa da obra racista de Lobato é uma causa hoje mais econômica do que social. Lobato ainda é um grande vendedor de livros. Por outro lado, a defesa do autor tem a ver com essa atmosfera que ainda vivemos: os crimes de ódio racial permanecem latentes no Brasil, onde se asfixia negros (recentemente tivemos o caso do Carrefour). Pensando por esse lado, Lobato ainda vai continuar nos assombrando durante muitos anos

Tom Farias, jornalista e crítico literário

"Não condizente com os valores atuais"

Os trechos alterados na nova edição são sinalizados ao leitor pelos números que indicam as notas presentes ao final do livro. Entre as justificativas, a frase mais recorrente é: "Expressão retirada do texto por não estar condizente com os valores atuais do contexto social do Brasil".

Em três ocasiões, as notas trazem explicações mais específicas. A primeira, referente ao trecho identificado acima como "3", afirma que optou-se por incluir tia Nastácia na defesa indignada de Narizinho, que antes falava apenas da avó.

A segunda se refere à retirada da palavra "sinhá" do texto, com uma explicação sobre o termo. Apenas na terceira delas, o cunho racista que teria motivado as alterações é mencionado diretamente: "A expressão 'com a beiçaria inteira' foi retirada desta versão por ser uma expressão estereotipada de cunho racial".

Para o crítico literário Tom Farias, as mudanças não reabilitam a obra ou a pessoa de Lobato. "Nada vai mudar o sentido da obra de um escritor se ele mesmo não o fizer. O que fica evidenciado nisso tudo é que se quer colocar 'pano quente' em Lobato para continuar a vender sua obra. Mesmo nessas 'soluções' encontradas, continuam perdurando outras ofensas à população negra brasileira", disse a Ecoa.

Farias lembra que o volume recém revisado pela bisneta não é o único indicativo do racismo do autor, que estaria evidente em cartas escritas, na obra "O presidente negro" e em sua maneira de se referir a Machado de Assis, "tratado, grosseiramente, de 'aquele negro', que não vale '500 réis' [em carta ao historiador Sérgio Buarque de Holanda]".

"Na verdade, as obras racistas de Lobato não deveriam mais fazer parte do currículo escolar brasileiro. Essa seria uma forma, em sentido prático, de não se propagar mais tais termos racistas", disse.