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UOL Debate: "Embora o naufrágio seja generalizado, o afogamento é seletivo"

Janaina Garcia

Colaboração para Ecoa, de São Paulo

07/08/2020 16h55

Mulheres chefes de família e a população negra nas favelas brasileiras têm sido os maiores afetados pela pandemia de coronavírus no Brasil. Combater a doença em um cenário que mescla desinformação e ações controversas do governo federal demanda, portanto, um olhar que busque combater também a desigualdade que as afeta e reforçar ações de solidariedade que têm sido implementadas, por parte da sociedade civil, no sentido de mitigar esse tipo de dano.

A constatação veio hoje (7) do debate "As desigualdades agravadas pela pandemia", organizado e transmitido pelo UOL. Participaram do encontro a médica e colunista de Ecoa Júlia Rocha, mediadora, o professor, deputado federal e ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha (PT-SP), e o líder comunitário e presidente da Cufa (Central Única das Favelas), Preto Zezé, ambos, convidados.

Para o líder da Cufa, os mais sacrificados pela pandemia são os pobres, "especialmente mães solteiras", de modo que, "embora o naufrágio seja generalizado, o afogamento é seletivo".

"Tem gente fazendo churrasco, de jet sky, e vamos chegar a 100 mil mortes [por Covid-19 no Brasil]; houve uma negação da ciência, e isso confundiu muito a população, principalmente na favela", considerou.

Zezé observou ainda que o isolamento social defendido pelas autoridades sanitárias como forma de conter o avanço da doença tem efeitos práticos e graves na favela que precisam ser ponderados, sobretudo quando se pensa em aprofundamento da desigualdade. Um desses aspectos, aponta, é o de que muitos trabalhadores e trabalhadoras que tiveram de ir para o front dos chamados serviços essenciais residem nessas áreas de maior vulnerabilidade social; o outro efeito é o de um isolamento existente independentemente da pandemia.

"Tem um caos de saúde desses, mas no primeiro momento quem quebrou foi a economia da favela: 87% das mulheres que tinham um negócio na favela quebraram; a mãe da favela está pensando no que colocar na mesa para o jantar", disse. "A Covid é só mais uma das violências, e, embora a cultura da máscara esteja bombando, porque há uma preocupação, o governo precisa adicionar outras políticas - a pandemia continua, e os mais fragilizados seremos nós", completou.

Zezé destacou uma ação da Cufa em uma favela de Fortaleza, onde ele reside: a entidade havia isso levar um vale de R$ 120 a 50 mães, mas, no dia, apareceram mais 50 mulheres, além das já previstas.

"Ficou uma saia justa, porque nunca tem para todo mundo. Mas o comportamento delas foi interessante: pegaram o vale e dividiram com as outras mães [que não estavam previstas de receber a ajuda]", relatou. "Nenhuma política pública devia ser articulada sem pensar nessas mulheres", ponderou.

Padilha critica Bolsonaro: "Muitas mortes poderiam ter sido evitadas"

O ex-ministro da Saúde de Dilma Rousseff (PT) criticou a postura do governo federal de não reforçar para a população a importância das medidas de contenção contra o coronavírus e classificou: "Dentre essas 100 mil mortes [a serem atingidas, oficialmente, até este final de semana], com certeza muitas eram evitáveis".

Na avaliação do parlamentar, a difusão de fake news e as ações do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) no sentido de minimizar a gravidade da pandemia e incentivar aglomerações ajudam a explicar a apatia de grande parte da população em não conseguir se organizar para gerar mudança.

Padilha sublinhou a existência de redes de solidariedade oriundas de cidadãos de classe média e de movimentos populares, mas, por outro lado, lamentou que a pandemia tenha dificultado a ocupação das ruas e de espaços importantes de comissões no Congresso, dada a vedação de aglomerações no período.

"Há um certo fosso [entre a percepção que se tem pelo trabalho da imprensa e pela situação em si] de como isso é experimentado; a Covid chegou pela classe alta, mas a primeira morte foi de um porteiro", apontou. "E também tem um fosso da vivência da situação, o qual fez com que alguns governantes tivessem uma postura quando a pandemia pegava os seus médicos e seus hospitais, mas passaram a ter outra quando isso estava mais controlado e a doença avançou mais para a periferia e população negra", completou.

A médica e colunista de Ecoa reforçou: embora haja toda uma "sofisticação da informação" a respeito do que a pandemia representa, especialmente nos meios de comunicação, o que prevalece muitas vezes é o "discurso fácil" que, não raro, contrapõe a ciência.

"O remédio do cuidado em saúde não é nem um pouco democrático. É muito mais encantador esse discurso fácil [e falso] que as coisas complexas ditas pela médica", analisou. "Se lá atrás tivéssemos tido uma unidade de discurso para ficar em casa e guardar a vida dos seus, em meio a um governo com características fascistas, a gente não teria agora os posts de 100 mil mortos na mídia. Isso não precisava ser assim", lamentou.

Ações que podem reduzir danos

Se a pandemia acirrou desigualdades, ela também aponta caminhos para a necessidade de uma mobilização que ajude a reduzir danos.

"Se não fosse a mobilização interna [das favelas], como estaria o quadro? A gente hoje chegou em um nível de atender mais de 3,6 milhões de pessoas, sem um tostão do poder público; zero. Não sei por que não se aproveita essa expertise — espero que a gente consiga produzir um engajamento de pessoas", avaliou o líder da Cufa. "Acho que tem um oxigênio novo que surge dessa solidariedade; para mim, o que tem de novo nesse processo é o se conectar com o mundo político".

Zezé lembrou que, nessa mobilização à parte das ações de governo frente à pandemia, houve ainda "uma adesão grande ao antirracismo"—impulsionada principalmente pelos atos contra o assassinato do norte-americano George Floyd, em maio, em Minneapolis, por um policial branco. "As pessoas têm que entender que as vidas negras continuam importando, mesmo com as manifestações diminuindo. Não tem como ser antirracista, mas aí vem uma reforma tributária em que as pessoas da comunidade pagam o mesmo imposto", exemplificou.

O líder do movimento que agrega favelas pelo Brasil aposta no trabalho em relação a laços afetivos para seguir nessa mobilização.

"Que a gente discuta agora a economia sabendo que é também cuidar das pessoas, porque não existe economia sem o trabalhador que gera riqueza. A gente vai trabalhando nossos lados afetivos para poder enfrentar os desafios que vêm agora".