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Coluna de Fuks para Ecoa inspira conto em projeto do NYT sobre pandemia

Capa do projeto Decameron, do "The New York Times", com contos sobre a pandemia - Reprodução/The New York Times
Capa do projeto Decameron, do "The New York Times", com contos sobre a pandemia Imagem: Reprodução/The New York Times

Thiago Varella

Colaboração para Ecoa, de Campinas (SP)

25/07/2020 04h00

Se você está conseguindo respeitar a quarentena, deve ter sentido alguma alteração na sua percepção do tempo. Claro que o cronológico segue igual, o relógio ainda marca as horas, a terça-feira segue depois da segunda e o mês de agosto já está batendo à porta. Mas os dias parecem iguais e passam em outra velocidade. Há quem sinta morosidade, outros veem do nascer ao pôr do sol em apenas algumas piscadas.

O escritor paulistano Julián Fuks, colunista de Ecoa, é um dos observadores deste tempo — não novo, diferente. E transformou o tema em coluna publicada em abril, sua estreia no portal, e também em um conto, que agora faz parte da coletânea The Decameron Project (ou Projeto Decamerão, em português), publicada na revista dominical do jornal norte-americano "The New York Times", também disponível em versão online com direção de arte caprichada. Hoje (25), o texto do brasileiro também está sendo publicado, no original em português, aqui em Ecoa.

No total, 29 escritores de várias partes do mundo, como o moçambicano Mia Couto, a canadense Margaret Atwood, autora de "O Conto da Aia", o americano-nigeriano Uzodinma Iweala, a norte-americana Rachel Kushner e o chileno Alejandro Zambra, foram convidados para escrever pequenos contos inspirados pelo atual momento de pandemia.

A inspiração para o projeto veio do livro Decamerão, escrito pelo italiano Giovanni Boccaccio, no século 14, durante o período em que a peste negra acabou com Florença. Assim como na obra do italiano, repleta de contos que não apenas tratavam na doença, o "The New York Times" abriu espaço para narrativas diversas.

Margaret Atwood, por exemplo, escolheu contar a história da pandemia do ponto de vista de um alienígena. E ainda coloca no conto a personagem Griselda que também está no livro de Boccaccio. A autora, que virou símbolo pop quando seu best-seller foi adaptado para série no serviço de streaming Hulu (disponível no Brasil via Globoplay), é conhecida por incluir em suas histórias casos que tenha lido em jornais ou livros, criando um mundo de ficção com pés na realidade, por vezes absurda.

Outro autor de sucesso entre o público brasileiro é Mia Couto. Para o projeto, o moçambicano escolheu uma história sensível e melancólica sobre indiferença e solidão na terceira idade. "As pessoas começam a envelhecer quando olham para o chão e vêm um abismo", diz o protagonista do conto ao ouvir uma batida na porta.

Já Victor LaValle, escritor nova-iorquino, falou em seu conto "Recognition" (Reconhecimento) sobre a relação entre vizinhos nos primeiros meses de quarentena. Em entrevista ao próprio "The New York Times", afirmou que quis dar destaque a "algumas pessoas de Nova York que não estavam necessariamente no centro das história sobre o que ia mal na pandemia e que também precisavam de cuidados". A escritora Laila Lalami, que vive nos Estados Unidos, mas nasceu em Marrocos, escreveu o conto "That Time at My Brother's Wedding" (Aquela Vez no Casamento do Meu Irmão) que fala sobre um imigrante que volta ao Marrocos para o casamento do irmão e tem dificuldades para regressar aos Estados Unidos.

No caso de Fuks, era inevitável falar da situação do Brasil. Ele foi convidado para participar do projeto logo no começo de sua quarentena e terminou de escrever há cerca de dois meses.

"Eu ficcionalizo pouco e escrevo pela experiência. Digo que sou um escritor sem imaginação, incapaz de fabular, dar nomes e inventar seres desconhecidos. O cenário [da pandemia] por aqui paralisou. Aqui a gente tem a estabilidade no caos. Foi imperativo para mim escrever sobre isso. E não consigo escrever esquecendo meu ponto de observação. Crio um alter-ego e escrevo a partir dele", contou.

No início da pandemia, Fuks passou a observar o que se passava com ele e com outras pessoas próximas. E esse processo de paralisia do tempo foi algo que muita gente reportou a ele. Com a quarentena e o distanciamento social, o passado recente, de seis meses atrás, ficou longe, e o futuro completamente incerto.

"Como o tempo não passa, as pessoas cancelam tudo o que vem pela frente, inclusive o que não precisa ser cancelado. Tudo isso parecia desbaratado. Escrevi uma coluna para Ecoa sobre isso e extrapolei no conto. Exagerei na tinta para que aquilo se subverta", explicou.

No conto, o protagonista se sente claustrofóbico no tempo e tem a decisão de escapar daquilo de alguma maneira. Além da questão da paralisia do tempo Fuks também abordou a gestão da pandemia no Brasil.

"O dia em que morreram 1.001 pessoas me causou uma sensação de infinitude. As 1.001 mortes eram mortes que não acabariam mais, como as 1.001 noites eram noites intermináveis. A gente, aliás, continua nesse patamar de mortes com a mesma sensação", afirmou.

"Então, como não pensar nesse contexto? Como não falar das soturnas autoridades que estão gerindo isso tudo? Por isso no conto, inevitavelmente e imageticamente as autoridades se transmutam em figuras patéticas e antiquadas que reverberam outro tempo de maior destruição ainda", completou.

Fuks confessa que, até por causa de sua rotina doméstica na quarentena, não conseguiu ler todos os contos. Mas gostou muito do que foi escrito pelo moçambicano Mia Couto.

"Ele consegue ter um olhar mais delicado, mais sensível. E retrata uma realidade daquilo que não se transforma", disse.