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Como um médico congolês, uma paisagista e SP encararam doenças graves

Katiele Fischer e o marido, Norberto, foram os primeiros a conseguir autorização da Justiça brasileira para o uso medicinal do canabidiol, em 2014  - Arquivo pessoal
Katiele Fischer e o marido, Norberto, foram os primeiros a conseguir autorização da Justiça brasileira para o uso medicinal do canabidiol, em 2014 Imagem: Arquivo pessoal

Fred Di Giacomo

Colaboração para Ecoa

03/01/2020 04h00

"Numa semana, ela não conseguia mais andar direito; algumas semanas depois, já estava andando de joelhos; passado mais um mês, ela já não sentava; e, no final desses quatro meses de regressão, ela perdeu tudo, tudo".

O depoimento acima resume a angústia da paisagista Katiele de Bortoli Fischer ao observar as sequelas da série de convulsões pela qual passava sua filha caçula, que podiam chegar a 80 por semana. As convulsões que castigavam a pequena Anny eram provocadas pela síndrome CDKL5, um distúrbio neurológico raro. "Ao final desse período, ela não se mexia mais, não sorria, não chorava, ficou bem comprometida mesmo", lembra.

O desafio de Katiele é que o remédio que podia ajudá-la era ilegal. Quem aliviou o sofrimento de Anny foi a maconha. Ou melhor, o canabidiol (CDB) uma substância derivada da cannabis, que a mato-grossense Katiele descobriu em um grupo de Facebook, quando nenhum medicamento tradicional ajudava na melhora de sua filha.

"Quando vi que poderia ser usado no tratamento, achei graça a princípio, por ser da Cannabis. Porém logo vi que era sério e poderia ser uma opção para Anny. Todo processo que envolve mudança de cultura é demorado e difícil. Nós sabíamos que não seria fácil, mas cada vitória conquistada é importante e faz a diferença na vida das pessoas", afirma.

A princípio, a família Fischer teve que importar ilegalmente o medicamento que estava salvando a vida de Anny. A luta para legalizá-lo foi retratada no documentário "Ilegal", de Tarso Araújo e Raphael Erichsen.

Seringa - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Seringa com pasta de canabidiol usada no tratamento de Anny
Imagem: Arquivo pessoal
"Ficamos chocados com tamanha eficiência. Quanto à melhora, não foi só dela mas também da família inteira. A redução nas crises trouxe qualidade de vida. Hoje ela dorme a noite toda, e nós também", contou Katiele para o Ecoa.

A partir de 2019, famílias como os Fischer não precisarão mais traficar saúde. A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) divulgou, dia 3 de dezembro, a liberação da venda em farmácias de produtos à base de Cannabis para uso medicinal. A medida entra em vigor 90 dias depois de publicada no Diário Oficial da União. "Essa novidade é positiva. Vai facilitar bastante a vida, não terá mais a demora em conseguir o ofício da Anvisa, a importação e o desembaraço aduaneiro. Existe ainda um caminho bem longo a ser percorrido. Porém a notícia me motivou a continuar acreditando", diz Katiele.

Como a Anvisa não liberou o plantio de maconha no Brasil, a matéria-prima para o remédio tem que ser importada de países que já o fizeram. A próxima batalha da família Fischer é, portanto, que legalize-se o cultivo no Brasil, reduzindo o preço do CBD.

O caçador de Ebola

O médico congolês Jean Jacques Muyembe, conhecido internacionalmente com "Ebola hunter" (ou "caçador de Ebola" em uma tradução literal), se deparou com o vírus que provocava uma mortal febre hemorrágica pela primeira vez em 1976. Na época, as taxas de mortalidade dessa doença misteriosa chegavam a quase 88% e geravam pânico mundial. Muyembe liderou as pesquisas que levaram ao descobrimento do mAb114, droga mais efetiva no combate ao Ebola e que diminui as taxas de mortalidade do vírus para até 34%.

Em 2019, Muyembe foi laureado com o Hideyo Noguchi Africa Prize da Agência de Cooperação Internacional do Japão por suas décadas de estudo e combate ao vírus. Nesse mesmo ano, participou ativamente das ações que controlaram a epidemia do vírus no país africano. O número de infecções deste último surto, que matou 2.182 pessoas desde agosto de 2018, chegava a 100 por semana, em julho, e agora, no final do ano, caiu para 20.

Jean Jacques Muyembe - Alexandre/AFP/Getty Images  - Alexandre/AFP/Getty Images
O médico congolês Jean Jacques Muyembe foi laureado, em 2019, com o Hideyo Noguchi Africa Prize por suas décadas de estudo e combate ao Ebola; a epidemia do vírus foi controlada no Congo
Imagem: Alexandre/AFP/Getty Images

"A epidemia está mesmo sob controle. Conseguimos estabilizar a doença", afirmou Muyembe, que é secretário técnico do Comitê Multissetorial de Resposta ao Ébola (CMRE), à agência Efe. Mas o "caçador", cuja meta é zerar os casos, pondera que ainda estão "muito vigilantes, porque se trata de uma epidemia".

A cautela faz sentido. A vitória de Muyembe ganhou ares agridoces em dezembro, quando a OMS denunciou que o grupo rebelde Forças Democráticas Aliadas matou quatro profissionais de saúde que combatiam o Ebola. Desde o começo de 2019, ocorreram mais de 300 ataques, que deixaram seis mortos e 70 feridos, entre trabalhadores da área da saúde e pacientes.

Silêncio = morte

Com 12,2 milhões de habitantes, a cidade de São Paulo encerra 2019 com uma estatística digna de se orgulhar. A metrópole tornou-se a maior cidade do mundo a receber certificado por ter eliminado a transmissão de HIV de mães que vivem com o vírus para seus bebês. Antes da capital paulista, apenas duas outras cidades brasileiras, ambas localizadas no Paraná, tinham obtido a certificação: Curitiba e Umuarama.

A notícia foi anunciada, em novembro deste ano, pelo prefeito de São Paulo, Bruno Covas (PSDB) em sua conta de Twitter:

"Recebi ontem a confirmação do ministro da Saúde que a cidade de São Paulo será certificada com o fim da chamada transmissão vertical da Aids, ou seja, aqui em São Paulo, por conta de uma série de políticas públicas que vêm sendo adotadas ao longo dos anos, que foram mantidas e ampliadas na nossa gestão, acabou a transmissão que é feita da mãe para o filho, para o feto, para a criança."

A vitória de ativistas e profissionais da saúde que atuam na capital vem em um ano de retrocesso no combate ao HIV. Dados divulgados no começo do ano pelo "Boletim Epidemiológico HIV/Aids" do Ministério da Saúde mostram que, entre 2007 e 2017, a notificação de casos de HIV entre os jovens (15 a 24 anos) cresceu assustadores 700%.

O dado gerou críticas às campanhas pouco explícitas, genéricas e voltadas para datas específicas, como o Carnaval, feitas pelo governo nos últimos anos e que acaba levando os jovens a acreditarem que a doença "é coisa do passado".

A constatação ressuscitou um cartaz icônico do ativismo contra o HIV, nos anos 80, que resumia: "Silêncio = Morte". O reboot foi executado para o Dia Mundial de Luta contra a Aids pela Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA).