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Patricia Lobaccaro

Como será a filantropia no Brasil pós coronavírus?

26/04/2020 04h00

A mobilização de todos os setores da sociedade brasileira em resposta ao coronavírus está linda de ver. Com doações empresariais históricas, como o investimento de 1 bilhão de reais do Banco Itaú para a área da saúde, as transmissões ao vivo dos artistas com recordes de doações - e de público - e a agilidade de resposta de líderes comunitários ao redor do país é possível notar que algo extraordinário está acontecendo no Brasil. O vírus desencadeou um nível de solidariedade jamais visto, e o valor das doações já chega a 3.3 bilhões de reais, segundo o Monitor das Doações da ABCR.

O Brasil provou que é um país solidário em situações de emergência. Como criar uma cultura de filantropia estratégica e mobilizar a sociedade para investir em programas com efeitos duradouros e que lidem com problemas estruturais?

Uma das coisas que ainda não emplacou na filantropia do Brasil são doações para pesquisa científica. Comparando as doações em resposta ao covid-19, nos EUA e na China os primeiros investimentos robustos anunciados foram para desenvolvimento de diagnósticos, tratamento, cura e vacina para a doença, como contei nesse artigo, incluindo US$150 milhões do Bill e da Melinda Gates, US$14 milhões do Jack Ma e US$30 milhões do Reed Hastings, CEO da Netflix.

Quem no Brasil doou para pesquisa de tratamento e cura? O Fundo Patrimonial Amigos da Poli, da Faculdade de Engenharia da USP foi um dos poucos que abriu edital para financiar inovações científicas para o combate da pandemia, apoiando 11 projetos. O Hospital das Clínicas conseguiu captar históricos 6 milhões de reais, o que é algo para ser celebrado, porém muito pouco diante do quanto foi mobilizado em cestas básicas.

Existem pouquíssimas fundações e filantropos no Brasil que investem em pesquisa científica. O Instituto Serrapilheira, criado com objetivo de financiar pesquisa, produção de conhecimento e iniciativas de divulgação científica é uma rara e importante exceção. Constituído com um endowment de 360 milhões de reais, o Instituto já apoiou 71 pesquisadores e 36 universidades e institutos de pesquisa. Se o Brasil quer ser o país do futuro, em algum momento precisamos popularizar a cultura de doação para universidades e para projetos de pesquisa e desenvolvimento de tecnologias. Ou então temos que continuar dependendo de investimento feito em outros países para encontrar curas e tratamentos para enfermidades que estão ceifando vidas em nossas comunidades.

É imprescindível também criar uma cultura de doação para além de ações assistenciais e emergenciais. Precisamos conseguir manter o nível de engajamento das empresas e investir em soluções duradouras e estruturais, como educação, qualificação profissional, infraestrutura básica, e contribuir para que as organizações sem fins lucrativos possam continuar existindo. O cenário a médio prazo é de muita incerteza. Segundo uma pesquisa sobre o Impacto do Coronavírus no Terceiro Setor realizado pela Agência do Bem com 800 organizações, 67% das ONGs tiveram uma queda de mais da metade de arrecadação em suas receitas após o início da pandemia. Segundo o estudo, 25% das ONGs podem fechar as portas e 58% encerrar projetos e atendimentos no curto prazo caso a situação atual não se reverta rapidamente. Apesar dos recordes nas doações em resposta à pandemia, os recursos estão indo para emergência, como compra de cestas básicas, mas não para apoio estrutural das ONGs.

Muitas pessoas me perguntam se o Brasil seguirá sendo solidário após a pandemia. Creio que a resposta para essa pergunta precisa vir de cada um de nós. Se queremos viver em um Brasil mais justo e sustentável, precisamos pensar e agir de maneira estratégica e ter mais protagonismo nessa construção.