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Mariana Belmont

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Amazônia Negra encontra a Mata Atlântica Negra

Obra do artista Mauro Neri - Reprodução
Obra do artista Mauro Neri Imagem: Reprodução

25/11/2021 11h04

Na minha primeira vez na Amazônia eu não sabia o que esperar. Já tinha feito viagens para algumas cidades da região norte do Brasil, mas a trabalho e sem conseguir olhar para aquela imensidão da forma certa. Já contei aqui sobre minha experiência na Amazônia.

Navegar nos rios e olhar e sentir a vastidão, a textura, a alma e o cheiro da floresta é das coisas mais fora de qualquer possibilidade de experiência que já passei. Fazer uma trilha até a sumaúma e encostar nas árvores é surreal.

Nasci na Mata Atlântica. Ela era meu quintal, meu chão de terra firme na margem dos rios Monos e Capivari, em Parelheiros. Foram ali os primeiros banhos de água limpa e as primeiras relações com os mais velhos e com a floresta. A Mata Atlântica também é resistência, e tenta respirar em meio à pressão do capital da especulação das cidades, em especial São Paulo. Amor demais pela serração, aquela neblina que acompanha a a serra do mar que margeia a cidade e o litoral. Eu morro de amores por essa floresta que é casa para as pessoas que precisam e para as nossas represas. Essa floresta que produz água e comida para uma cidade que não cuida dela como deveria.

Quando a gente pensou em produzir uma obra com o tema Amazônia dentro da Mata Atlântica, achei que a possibilidade de fazer essa conexão e proporcionar esse encontro era de uma beleza sem tamanho. Imagina essa conversa, essa mesa onde encontramos, na margem da represa Billings, dois biomas que tentam sobreviver.

Biomas que abrigam as histórias e a resiliência de uma população que carrega nos braços a sobrevivência de todos nós. . Amazônia Negra com Mata Atlântica Negra, entre o carimbó do Sairé e o samba do Pagode da 27, entre a existência e a resistência cultural, ambas tão necessárias para que as pessoas sobrevivam também com a cultura.

Quando a gente pensou, primeiro achei maluco, mas o Mauro, o artista, abraçou. Esse meu irmão de alma, que eu pude estar ao lado na construção de revoluções em São Paulo durante um tempo. O Imargem, que propõe um olhar cuidadoso para a paisagem povoada da periferia, fomentando o pensar e agir diante das potencialidades e problemáticas da nossa sociedade, da margem à centralidade da cidade, ampliando os olhares e aguçar as sensibilidades de todos para o espaço urbano. Espaço entendido como a paisagem povoada. Esse foi o primeiro movimento que me levou pelo caminho da transformação, não só da paisagem da cidade, mas do afeto. Foi ele que me puxou para as entranhas dessa floresta, que é um misto de árvores e casas, becos e vielas.

Mauro é minha casa itinerante, que percorre os lugares da cidade e do mundo. A gente tem uma coisa em comum: a zona sul é nosso lugar de afeto e para onde voltamos sempre. Ele para o Grajaú e eu, Parelheiros. A geografia explica tudo por ali, eu acho. Ela dá contorno político e nos apresenta a fronteira entre a área urbana e a verde. Um distrito peninsular rodeado pela maior represa em área do mundo, a represa Billings, que nos separa e nos integra com o restante dos bairros. E que bom que a gente se encontrou nessas fronteiras, Mauro.

A possibilidade de trazer a Amazônia para o Grajaú é a possibilidade de abrirmos as portas de uma conversa que ainda não está sobre a mesa. O debate sobre racismo ambiental profundo não é sobre narrativas criadas para entrar na moda. É olhar nos vãos, nas vielas e nas trilhas dessas florestas que se misturam com cidade e campo, que abrigam também a desigualdade social. Que abrigam as desigualdades e as violações de direitos das populações que vivem nelas.

Quem topou essa empreitada, em parceria com o Mauro foram o Instituto de Referência Negra Peregum e a Uneafro Brasil, organizações que mantêm o olhar constante para os territórios, para o chão onde pisamos.

A obra foi lançada na semana que celebramos o Dia da Consciência Negra, data que marca a morte de Zumbi dos Palmares e está localizada no Grajaú, próximo a Área de Proteção Ambiental Bororé-Colônia, região escolhida por apresentar características ambientais fundamentais para a população paulista, além de ser uma região de manancial. O nome? "Matas Vivas Vidas negras, salvem".

Realizada nas empenas da Escola Estadual Mariazinha Congílio, a obra simboliza a população preta em meio a realidade das florestas brasileiras. Dados do Censo, por exemplo, estimam que mais de 80% da população da Amazônia é negra. A obra é linda e nos convoca a olhar com profundidade sobre um tema urgente.

O racismo ambiental precisa ser debatido e enfrentado, pela vida das pessoas e pela natureza. Não há como pensar em justiça climática sem olhar para quem está na ponta. Que justiça é essa que escreve em livros e que tem uma mesa ou outra ali para tratar de algum tema, mas não tem coragem de enfrentar o racismo? Manter essa ideia e prática de justiça é manter uma justiça colonizadora!

Aprendi na Amazônia, aprendi na Mata Atlântica, aprendemos todos os dias com nossos biomas afetados pela destruição e pelo desmatamento liberado. As florestas agonizam para respirar e para nos fazer respirar.

O racismo ambiental é presente nas cidades e nas florestas, fazer uma obra junto com um artista como o Mauro Neri, que nos desafia sempre a veracidade, é uma honra imensa, um artista parceiro que nos inspira e nos desafia a olhar para o território. Trazer a Amazônia negra para um lugar como o Grajaú, extremo sul de São Paulo, dentro de uma área de proteção ambiental na Mata Atlântica, confirma que os biomas se conectam pela cultura, pela beleza e pelas mazelas das desigualdades sociais.