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Mariana Belmont

Emicida e Jean Wyllys são meus heróis durante esse cenário de catástrofe

23/04/2020 04h00

Salve São Jorge guerreiro!

Uma das melhores formas de começar o texto essa semana é agradecendo publicamente a Jean Wyllys, por seu ato de coragem ao cuspir na cara do sociopata, na época deputado federal, e hoje presidente da República. Jean, sabemos o que isso te causou pessoalmente e publicamente. Muita gente entendida de alianças e teorias de paz acreditava que aquilo que você fez foi errado, mas, mano, eu sempre estive com você nessa, mesmo você não sabendo quem eu sou.

Nossa esquerda, meus caros, é puro bundamolismo. Alguns de nós olhamos para a história e ficamos arrependidos de não ter cuspido nesse presidente junto com Jean. Por isso, Jean, obrigada por realizar tão fortemente um sonho de muitos brasileiros. As imagens dos últimos dias me reforçaram a essa vontade.

Outra coisa.

Há uns dias comecei a ouvir o podcast feito pelo Emicida, AmarElo - O Filme Invisível. Em três edições, o rapper desvenda as referências das letras e composições de seu mais recente disco de estúdio. É lindo, lindo! Se puder, desligue-se de tudo, feche os olhos e ouça o Emicida falando. São momentos de um olhar bonito para o caminho e história das coisas. Como uma força da natureza, Emicida nos provoca a fazer esse caminho.

É lindo, não sei dizer de outra forma.

Tive a oportunidade de ouvir Emicida logo na adolescência e conhecê-lo pessoalmente em 2012, durante um show no encerramento do Festival Entretodos, no Parque da Aclimação. Foi mágico. Era tudo incrível, bonito e intenso demais: sintonia do público, seriedade no trabalho do Emicida... foi ali que virei fã. Foi também nesse período que virei fã do Fióti, músico e profissional de excelência. Eu agradeço aos dois por tanto.

É hora de ouvir Emicida mais do que nunca.

Então, esse meu texto é uma recomendação: ouça Emicida. Faço aqui um chamado para ouvir qualquer disco do Emicida, com coração aberto, mas especialmente ouvir "AmarElo". É impressionante! O Tony Marlon escreveu sobre o disco, assim que foi lançado, em um texto lindo e que me representa.

Ouvir qualquer coisa do Leandro é voltar para casa, sentar na janela e ver o caminho de volta, é lindo. É a poesia que em muitos momentos é negado e que não faz parte do corre do dia a dia. Ouvir Emicida é ter o sol dentro de casa e os pés no chão sobre o momento em que estamos passando. São letras fortes, mas que dão caminhos e cuidado, que abraçam. Com temas que nunca saem da nossa pauta, como o racismo e a desigualdade social, juntas e conectadas de forma brilhante e no movimento das coisas.

"Com a fé de quem olha do banco a cena
Do gol que nós mais precisava na trave
A felicidade do branco é plena
A pé, trilha em brasa e barranco, que pena
Se até pra sonhar tem entrave
A felicidade do branco é plena
A felicidade do preto é quase..." - Ismália

A primeira vez que chorei foi ouvindo Mãe. Foi em casa e depois no meio do show com Tony. Um olhar de admiração e respeito. E ele olha e diz: "Um sorriso no rosto, um aperto no peito, imposto, imperfeito, tipo encosto, estreito. Banzo, vi tanto por aí. Pranto de canto chorando, fazendo os outro rir. Não esqueci da senhora limpando o chão desses boys cuzão...". O clipe é especialmente bonito... Chorei de novo.

Mas não é só isso, as músicas do Emicida são aulas, são abraços e são documentos vivos da nossa realidade absurda.

Olhar com admiração para o que realmente nos importa.

Neste tempo de dificuldades pessoais e coletivas, onde o dia do trabalho não acaba, o cansaço não encerra no horário comercial e a angústia constante sobre o que será de nós não dorme, poder ouvir sobre a importância das coisas, o movimento das coisas, o desenho e o significado, é um refúgio para entender o óbvio.

Afeto, sentimento, cor, vida, realidade, sabedoria, slam, rap, histórias, raízes, países e tudo que caminha até chegar em AmarElo e no restante do mundo.

Tenho me livrado de discussões inúteis. Tenho focado nas insignificâncias que me significam mais e que me fazem sonhar com um futuro possível. Posso estar confusa quanto ao presente, mas animada com o futuro que vamos reconstruir. Ouvir Emicida enquanto trabalho, antes de dormir, limpando a casa ou escrevendo esse e outros textos, me faz acreditar que podemos fazer diferente. E, de novo, olhar para as lembranças é poder ressignificar o presente e o futuro. Eu acho isso lindo e necessário.

O Emicida me emociona e emociona uma porção de gente. É tão bonito poder fazer parte da mesma geração e ter ele como nosso principal pensador de nossos tempos.

Não é incrível a gente sempre perceber que cada letra nos transporta para casa ou para a rua que a gente nasceu ou o caminho do ônibus? Olhando para fora do trem, saindo do Grajaú e seguindo o próximo rumo... É como se eu tivesse caminhando sempre pela cidade e olhando pra ela do mesmo jeito que ele canta. Saindo cedinho e voltando tarde. É muito familiar.

Meu tempo acabou.

Tá difícil sobreviver e existir nesses tempos, é cada dia um punhado de tristeza e o aumento do número de corpos dos nossos nos dados. Como a gente se salva e se cuida para cuidar e ser alguém no mundo que apoia e faz corres necessários? Eu não tenho respostas, mas tenho pistas. Ouça a música que te conecte com o mundo e te dê o direito de sonhar com os pés mais ou menos no chão.

Por isso, eu agradeço ao Emicida hoje, por ser tanto e emocionar tanto. Por isso, eu agradeço também a Jean Wyllys que nos mostra a força e nossos limites ao enfrentar os tempos dolorosos que vivemos.

"Então eu vou bater de frente com tudo por ela
Topar qualquer luta
Pelas pequenas alegrias da vida adulta
Eu vou
Eu vou pro fronte como guerreiro
Nem que seja pra enfrentar o planeta inteiro..."
- Pequenas Alegrias da Vida Adulta

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Ouça mais nesse período também e tente não reagir com opiniões prontas para tudo. Faça um exercício e, para começar, indico: "Ordem Natural das Coisas".

"Farelos de um sonho bobinho que a luz contorna
Dar um tapa no quartinho, esse ano sai a reforma
O som das criança indo pra escola convence
O feijão germina no algodão, a vida sempre vence
Nuvens curiosas, como são
Se vestem de cabelo crespo, ancião
Caminham lento, lá pra cima, o firmamento
Pois no fundo ela se finge de neblina
Pra ver o amor dos dois mundos..."