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Júlia Rocha

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Para conhecer: Valeska Zanello e o que não nos contam sobre amor e gênero

Valeska Zanello é pós-doutora em psicologia clínica, professora adjunta na UnB e coordenadora do grupo de pesquisa de saúde mental e gênero do CNPq - Arquivo pessoal
Valeska Zanello é pós-doutora em psicologia clínica, professora adjunta na UnB e coordenadora do grupo de pesquisa de saúde mental e gênero do CNPq Imagem: Arquivo pessoal

11/01/2022 06h00

A segunda coluna do ano comemora a oportunidade de apresentar a vocês que me acompanham aqui uma pesquisadora e psicóloga brasileira cuja produção científica vem impactando não só a formação de jovens estudantes de psicologia mas também a visão de pessoas comuns sobre gênero e saúde mental.

Valeska Zanello é pós-doutora em psicologia clínica, graduada em psicologia e em filosofia, professora adjunta do Departamento de Psicologia da UnB, orientadora de mestrado e doutorado no Programa de pós-graduação em Psicologia e coordena o grupo de pesquisa de saúde mental e gênero do CNPq.

Conheci a professora Valeska em uma busca por referências sobre estudos de gênero no Brasil. Já se vão quase três anos. Desde então, li seu sensacional e indispensável livro, "Saúde Mental, Gênero e Dispositivos", lançado em 2018 pela Editora Appris, e segui acompanhando a divulgação científica que promove por meio do seu canal no YouTube.

Valeska é bem-humorada, de fala simples e acessível, mas o que ela fala reverbera de forma profunda em tudo aquilo que já vivenciamos ou conhecemos sobre gênero, relacionamentos amorosos e relações sociais de poder.

Valeska, por que nós, mulheres, temos os nossos relacionamentos amorosos como pilares essenciais para o nosso bem-estar? A impressão que eu tenho é que a gente não vale nada se a gente não está namorando ou se a gente não casou. É maluquice minha ou você acha que essa minha impressão faz sentido?

Valeska Zanello: Faz todo sentido, Júlia. E isso tem a ver com a forma de amar que é interpelada hoje, nesse momento histórico, no nosso país, desse tornar-se mulher. Ou seja, existem várias pedagogias culturais, afetivas, que nos ensinam uma certa forma de amar que é identitária.

Eu criei uma metáfora para exemplificar isso que é a "Prateleira do Amor". Nós, mulheres, nos subjetivamos, nós nos constituímos como mulheres na prateleira do amor. E essa prateleira, assim como a prateleira do supermercado, tem posições diferentes. Ela é mediada por um ideal estético, que é branco, loiro, magro e jovem. A chancela de sucesso dessa prateleira ou dessa forma de amar é ser escolhida.

Por isso, é muito comum que mesmo uma mulher muito bem-sucedida profissionalmente, com muito dinheiro, com muita fama, seja questionada antes de qualquer coisa sobre a sua situação amorosa: "Casou? Tá namorando? Quando se separou? E aí, tem um paquera?" É como se antes a gente tivesse de mostrar essa carta de apresentação que comprova o sucesso da nossa mulheridade.

Esse sucesso é não só ter sido escolhida por um homem, mas, depois de ter sido escolhida, conseguir manter esse homem. Essa forma de amar nos deixa completamente vulnerabilizadas. Isso porque temos esse botãozinho que pode ser acionado por qualquer "perebado", que é exatamente esse se sentir escolhida. Isso explica o porquê de muitas mulheres se apaixonarem não pelo homem real, mas pelo encantamento que elas acham que provocam nesse homem. Assim, a nossa autoestima acaba por ser terceirizada nessa forma de amar.

O que a gente aprende no processo de mulherificação é que a gente só é desejável se tem algum homem nos desejando.

Interessantíssimo isso de o amor ser identitário para nós, mulheres. Significa que ele é quase quem somos como pessoas, entendi direito? E sendo o amor e o relacionamento amoroso algo tão central na nossa vida, suponho que a gente vai ser treinada a ser capaz de fazer de tudo para sustentar esse amor, mesmo que isso faça muito mal pra gente. Afinal, o que somos depende disso. É mais ou menos assim?

Exatamente. E é mais do que quem somos como pessoas. É que valor nós temos como mulher. Isso quer dizer que a chancela do valor da nossa mulheridade é ser escolhida e se manter escolhida por um homem. Por isso é muito comum que se pergunte às mulheres que não são casadas se elas estão namorando, se casaram, se estão paquerando alguém. E se a mulher responde que não está se relacionando com ninguém, geralmente, o que ela ouve de volta é um: "nossa, mas uma moça tão bonita". Inclua aqui qualquer adjetivo: tão prendada, tão inteligente, tão simpática. O que se pressupõe é que uma mulher solteira no nosso país está encalhada. Ou seja, ela foi preterida. Ninguém, nenhum homem a quis. A gente nunca pensa em uma mulher solteira como uma mulher tendo protagonismo.

Num cenário como esse, a gente poderia pensar assim: "bom, então o casamento protege a saúde mental das mulheres." Contudo, o que as pesquisas na área da psicologia mostram é o contrário. Geralmente, em países machistas e sexistas, como é o caso do Brasil, o casamento é um fator de risco para a saúde mental das mulheres, ao mesmo tempo que, para os homens, é um fator de proteção.

Esse é um ponto importante. O fato da chancela do nosso valor de mulheridade ser o fato de sermos escolhidas e nos mantermos escolhidas por um homem coloca as mulheres em uma situação de mantenedora dessa relação. Custe o que custar. Existem várias pedagogias afetivas na nossa cultura que nos ensinam isso. O maior exemplo: "A Bela e a Fera".

Um filme que já foi reeditado e é sempre sucesso de bilheteria, que conta a história de uma menina linda que se apaixona por um ogro. E aí, com muito esforço e dedicação, ela transforma o ogro "perebado" num príncipe encantado.

Isso só acontece em filme. Em geral, o que a gente vê são mulheres que se casam com um ogro e vão passar a vida inteira e morrer com um ogrão. A gente não vê filmes com um cara lindo e maravilhoso casando com uma "ogra". Isso não existe. Isso é muito importante de ser observado, porque o mesmo enredo é reeditado de muitas formas. Ano passado a gente teve a série Bridgerton, com várias questões interessantes, mas que também repetiu esse enredo: uma moça que casa com um homem que é problemático, que a maltrata, que tem arroubos, impulsos agressivos, mas que no final se torna um cara legal.

Nesse contexto, o que a gente aprende é que a transformação depende do nosso investimento e do que a gente faz para que isso aconteça. Isso faz com que, no Brasil, muitas mulheres se casem não com o homem verdadeiro, o homem real que elas têm do lado. Elas se casam com o homem que elas querem que esse homem se torne. Como se o amor fosse uma aposta na bolsa. Ou seja, eu vou investir muito aqui pra colher algo bom no futuro. E o que a gente sabe é que, do ponto de vista da clínica, da psicoterapia, uma pessoa só se transforma se ela quiser muito. Por isso que geralmente as coisas acontecem como eu disse. A mulher se casa com um ogro e vai até o final da sua vida ao lado de um ogrão.

Gosto de ressaltar também o papel das outras tecnologias de gênero, das outras pedagogias afetivas. Uma das mais importantes aqui no Brasil são as músicas. E dentre as músicas, o gênero mais escutado é a música sertaneja. A cada 10 músicas ouvidas nas rádios brasileiras, 9 são desse gênero.

Eu fiz uma pesquisa com uma ex-aluna sobre as músicas sertanejas mais ouvidas durante três anos e é interessantíssimo observar como se constrói esse imaginário. O que se exalta é sempre essa ideia do encontro com a mulher que foi "A Mulher", "A Especial".

Esse é exatamente o botão que aciona o dispositivo amoroso: "Você é diferente das demais." Importante perceber aqui a rivalidade que se estimula entre as mulheres naquela prateleira. E continua: "Antes eu era um bebum, eu só ia pra festa, minha vida era perdida e agora eu me tornei um homem de família, que vai pra sorveteria. E você é a responsável por isso."

É como se fosse a coroação desta mulher que foi escolhida na prateleira, dando esse valor da mulher que é diferente de todas as demais. O que se vende nesse imaginário para esta mulher é que isso não é só desejável mas é totalmente possível.

E como acontece de uma mulher e um homem dentro da mesma sociedade, às vezes até dentro da mesma casa, tornarem-se pessoas tão diferentes. A mulher que tem o relacionamento amoroso como objetivo central da sua vida e o homem que não liga pra isso, ou ao menos não tem o amor como algo identitário para si? O que acontece nesse meio do caminho que a gente se torna tão diferente?

Em relação aos homens, a gente também vai ter um caminho preferencial de subjetivação. Do "tornar-se homem". Para as mulheres, os dois pilares identitários são o dispositivo amoroso e o dispositivo materno. Para entender esse processo é muito importante saber que o núcleo central do dispositivo materno é baseado no que eu chamo de heterocentramento. Significa que existem fortes pedagogias afetivas na nossa cultura que nos ensinam desde que a gente é criança que a gente deve atender o outro, estar sempre disponível para o outro e priorizar os interesses, desejos e anseios dos outros em detrimento dos nossos próprios desejos.

Nós, mulheres, aprendemos que: primeiro o outro, segundo o outro, terceiro o outro, em décimo a gente. Já os homens passam por um egocentramento. Assim, eles aprendem: primeiro eu, segundo eu, terceiro eu, em décimo os outros. Dessa forma, nós, mulheres, acabamos nos responsabilizando completamente pelo cuidar.

Esse é um fenômeno que foi construído historicamente. Ele se localiza no tempo principalmente a partir do século 18, que é o século de consolidação do capitalismo, e segue até hoje. Temos a divisão sexuada do trabalho muito forte nesse sistema. A ideia de que o cuidado seria algo natural pelo simples fato de sermos portadoras de um útero acaba justificando a ideia de que cuidar não nos custa. Que seria uma espécie de vocação. Uma "realização" bem entre aspas.

Existe claramente uma expropriação do sistema em relação a isso. Em geral, quando alguém adoece na família, quem cuida somos nós e quando a gente adoece, quem cuida da gente são as nossas mães, irmãs, tias, primas e filhas.

O ápice da realização do dispositivo materno são os filhos propriamente ditos. Contudo, mesmo não tendo filhos, nós, mulheres, não estamos livres do dispositivo materno. Sempre se espera que a gente esteja disponível para atender os outros, mesmo que isso nos custe caro. Mesmo que isso nos custe abrir mão de nós mesmas.

No caso dos homens, os pilares identitários são totalmente diferentes. Para eles, isso acontece no que eu chamo de dispositivo da eficácia. Esse dispositivo é baseado em dois tipos de virilidade que são essenciais, na definição atual do nosso país, do que "ser um verdadeiro homem". São elas a virilidade sexual e a virilidade laborativa (do trabalho). De forma sucinta, um verdadeiro homem precisa ser um trabalhador provedor e um comedor sexual ativo.

Precisamos entender que os homens lucram com o dispositivo amoroso e materno das mulheres. Na nossa cultura, os homens aprendem a amar muitas coisas, e as mulheres aprendem a amar os homens. Assim, a relação não dá certo. Enquanto nós somos amorcentradas e passamos a vida investindo nos homens, eles estão investindo no projeto de vida deles. Nós oferecemos a água e o húmus e eles são somente a planta que simplesmente cresce.

O dispositivo materno alimenta os homens enormemente. Enquanto nós estamos cuidando deles, por eles e para eles, eles estão cuidando e investindo na própria vida. Pensa: quem compra o presente do amiguinho da escola dos filhos? Do parente que faz aniversário? Quem pensa e realiza tudo para a casa e para a família funcionarem?

As mulheres enfrentam um grande desafio quando elas têm um grande projeto na vida profissional ou pessoal. Elas se sentem numa encruzilhada, porque se investem muito nesse projeto é como se elas tivessem deixando de investir na relação e nos filhos, e aí acabam se sentindo muito culpadas. O que geralmente acontece é que geralmente buscam um tipo de trabalho e projeto que permita a elas conciliar, mesmo que isso seja abaixo da expectativa que têm. Vemos isso com frequência na medicina. O mais comum é que as mulheres abram mão daquelas especialidades que exigem muita dedicação e maior flexibilidade de tempo, como neurocirurgia, por exemplo. Geralmente, as mulheres que querem seguir essa carreira ficam com medo de ficarem sozinhas, dos maridos abandonarem.

Os homens estão tão acostumados a receberem esse hiperinvestimento — e, quando a mulher não faz esse investimento, em geral, ele vai buscar se beneficiar do dispositivo amoroso e materno de outra mulher. A não ser que eles estejam muito apaixonados, mesmo.

Investir na carreira não proporciona à mulher uma chancela do seu valor de mulheridade. Ao contrário, coloca esse valor em xeque, pois ela está deixando de investir no amor e no dispositivo materno. Em relação è escolha da carreira, os homens não passam por isso. Esse investimento é a chancela do valor da sua hombridade. Quanto mais ele for bem-sucedido, for reconhecido e produzir dinheiro (porque o sucesso também se relaciona a isso) mais é chancelado e admirado como homem. E não é só isso: torna-se maior a chance de ele ter acesso a mulheres bem localizadas na prateleira do amor.

Gênero é sempre interacional. Isso quer dizer que quando um homem conquista uma mulher dentro desse ideal estético, uma mulher branca, "boazuda", jovem, dentro do padrão estético dos nossos tempos, essa mulher chega como um troféu. Um troféu que chancela perante os outros homens o valor daquele homem.

Para uma mulher, ser desejada por um cara que não é tão bem-sucedido ou não é tão desejado no mercado amoroso é melhor do que nada. Mas se esse homem tem muito reconhecimento profissional e é desejado, isso faz com que ela tenha um "upgrade" na bolsa do amor.

Muitas mulheres sempre me perguntam: "Mas como sair desse dispositivo amoroso?" Eu respondo que é preciso descolonizar os afetos. Existem algumas estratégias para isso. A primeira é cultivar o letramento de gênero. Estudar, fazer grupos com outras mulheres e, nesses grupos, ler, aprender e repensar as próprias experiências para assim desnaturalizar esse machismo que nos constituiu como mulheres.

O segundo ponto é poder trocar experiências entre mulheres, nesses grupos ou em outros ambientes. Nós aprendemos muito com as vivências umas das outras. Ouvir uma mulher que está problematizando uma questão me faz enxergar situações que tive e que são semelhantes e eu ainda não estava me dando conta. Trata-se de uma politização do sofrimento. Começo a perceber que aquilo que me faz sofrer não diz respeito só à minha biografia, mas diz respeito a uma violência estrutural. Gênero e raça são focos de violência estrutural. A politização do sofrimento é um fator de proteção da saúde mental das mulheres.

Além de tudo isso, é preciso ter paciência. Afinal, não é um processo simples e rápido. Entretanto é um processo que vale muito a pena. Principalmente porque transforma a vida dessa mulher. Eu acho especialmente importante dizer que desconstruir o dispositivo amoroso não faz com que essa mulher não queira se relacionar. Apenas faz com que o amor seja um algo a mais, não algo central para a realização dessa mulher. Nesse sentido, ela passa a ter escolha.

Ocorre que os homens estão tão acostumados a serem a lâmpada, e a gente, o mosquito, o inseto em volta da lâmpada, que quando eles passam a ser somente uma das coisas importantes na vida de uma mulher e não mais o centro, eles entram em crise porque se sentem desimportantes. Significa que eles lucram muito com esse descentramento que o dispositivo amoroso causa na vida das mulheres. Um descentramento em relação a elas mesmas.

Valeska, muitíssimo obrigada por dedicar o seu tempo para nos trazer tantas reflexões importantíssimas e que literalmente salvam vidas! Fique à vontade para deixar uma mensagem a todas as pessoas que nos acompanharam até aqui.

O que eu gostaria que ficasse para as mulheres é que é possível descolonizar esses dispositivos, esses afetos, e reaprender modos de existir, modos de estar e de estar com os outros. Eu gosto muito de uma frase budista que diz assim: "A gente não luta contra a escuridão. A gente acende uma vela."

O letramento de gênero e a educação têm papel fundamental nesse processo. Falo da educação em um sentido amplo. É importante estudar, ler, montar grupos de discussão. Há muitos grupos ocorrendo de forma virtual com leituras muito ricas no Brasil. Ter esse momento de fomento e troca de experiências é fundamental. Politizar esses afetos traz a noção de que eles são muito mais compartilhados do que a gente imagina. Esses momentos trazem um grande aprendizado de estratégias desse descentramento. E isso não pode ser deixado para amanhã. É preciso começar logo.

Para aquelas mulheres que têm mais tempo e possibilidade de acessar, eu sempre oriento buscar um processo de psicoterapia. De preferência com essa abordagem de gênero. Quem não tem acesso por questões financeiras pode buscar esse atendimento por meio das clínicas das próprias faculdades de psicologia que normalmente oferecem o serviço de forma gratuita como parte dos estágios obrigatórios para a formação dos alunos.

Para os homens, eu também gostaria de deixar uma mensagem. Nós, mulheres, não nascemos mulheres. Nós nos tornamos mulheres de uma certa forma. Ou seja, existem processos de mulherificação. Da mesma forma, homens também não nascem homens. Eles se tornam homens. E se tornam homens nesse padrão de masculinidade adoecida e adoecedora para quem convive com esses homens.

É muito importante que os homens participem desse processo de desconstrução desse machismo. Homens também podem buscar grupos, leituras e,, principalmente ouvir as mulheres. Quando uma mulher disser que você está sendo machista, violento, em vez de reagir e tentar se justificar para não se pensar, abra o ouvido e escute. Deixe essa palavra fazer efeito em você.