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#DaQuebradaProMundo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Carta para meu irmãozinho alemão, o grandioso Marvin.

O escritor Alexandre Ribeiro e seu amigo alemão Marvin - Acervo Pessoal
O escritor Alexandre Ribeiro e seu amigo alemão Marvin Imagem: Acervo Pessoal

04/06/2021 06h00

Dizem que quando nossos amigos morrem, pedaços da gente se vão também. Para além disso, prefiro acreditar que vão ao céu em busca de abrilhantar e guiar nossos caminhos. As estrelas do céu são as bibliotecas anciãs pegando fogo, meu irmãozinho. Elas não nos esquecem. E é também nosso dever não esquecer de mirar o céu.

Na medida que voltava para casa minha vida cruzou aquela antiga esquina da sua, meu irmãozinho... Robert-Koch-Straße... A vida não sabe brincar de ironia. O homem que nomeou o instituto alemão combatente a essa e outras tantas doenças foi também o homenageado na rua que para ti foi morada. É, meu irmãozinho... A vida não sabe brincar de ironia.

Gosto de pensar que sentimentos são visitantes dentro de nossas caixas torácicas, por isso quero que essas palavras te abracem na medida correta, sem te sufocar para que eles possam passar. Se quiser, preciso te lembrar que não é vergonha para nós meninos o choro. Te peço que chore... Chore assim como meu peito chorou e cristalizou ao atravessar aquela esquina vazia de vida. Vazia de ti e de sua mamãe. Vazia de sentidos e aquele sorriso doce que ela sempre trazia.

Fico refletindo, preocupado, se alguém conseguiu traduzir em libras para ti um sentimento tão complexo e profundo - o da estrela que se criou. Só queria te agradecer por você ser essa estrela que fica.

Assim que eu cheguei na Alemanha aprendi a ser criança de novo ao seu lado, na escola primária Horst-Koesling-Schule. Em um ano de convívio aprendi contigo que deficiências existem, sim. Elas são esses limitadores que alguns chamam de "normal" e querem enquadrar o mundo todo em uma certa "normalidade". O brilho dos seus olhos a cada pequeno sopro de vida é um lembrete constante: não somos deficientes em nada. Somos celebradores da pluralidade, da diferença.

Ao mesmo passo que você se encantou com meu cabelo crespo cacheado me encantei com o implante coclear na parte lateral de sua cabeça, esse milagre da tecnologia que poeticamente transforma a voz das pessoas naquilo que você mais adora: robôs e metais coloridos. Esse milagre da convivência que me fez entender que "está tudo bem ele falar aos gritos". Os meus limites não precisam limitar você.

Falamos outro idioma, entretanto sentimos o mesmo esplendor arrebatador de um coração aberto, meu irmãozinho. E é por isso que estou e estarei aqui. Buscando da minha maneira expressar essas palavras, e tentando aprender a expressá-las no nosso idioma da poesia do corpo, o Gebärdensprache.

1 - Karl Pfeffer / Wikipedia  - Karl Pfeffer / Wikipedia
Alfabeto alemão em libras
Imagem: Karl Pfeffer / Wikipedia

Essas palavras são direcionadas para ti, entretanto, são um lembrete para todos nós: a saudade é o preço que pagamos por uma vida preenchida de amores. O luto é nosso pedágio emocional. Não se esqueça do valor das humanidades, meu irmãozinho. Não esqueça que a nossa vida não se precifica... não se esqueça.

Antes que suas lágrimas se esgotem, te agradeço por colorir e florir a vida de cada um de nós. E também rezo para que suas lágrimas escorram pelo peito, fertilizando teu jardim das boas esperanças.

Que a "mama" descanse em paz e dê um abraço apertado no meu coroa e na minha vozinha nesses planos etéreos. Te amo e estou aqui por você, meu irmãozinho alemão, o grandioso Marvin.