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Bianca Santana

O devir é quilombola

Selma Dealdina organizadora do livro "Mulheres quilombolas: territórios de existências negras feministas" - Reprodução/Facebook
Selma Dealdina organizadora do livro "Mulheres quilombolas: territórios de existências negras feministas" Imagem: Reprodução/Facebook

22/12/2020 09h58

Partilha. Vida em comunidade. Construção do território em coletivo. Compartilhamento do acesso a bens, em especial à terra. Características dos quilombos enumeradas por Selma Dealdina em um dos artigos que compõem o livro "Mulheres quilombolas: territórios de existências negras feministas", organizado por ela mesma, publicado há um mês pelo selo Sueli Carneiro, da editora Jandaíra. Livro obrigatório não apenas para quem quer entender mais sobre as relações raciais ou os sujeitos políticos quilombola e mulher negra, mas também para quem sonha mundos onde todas e todos possam viver.
Há mais de 6 mil quilombos no Brasil, segundo a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ). E apesar de a Constituição de 1988 garantir a propriedade definitiva de terras a essas comunidades, apenas 3.386 foram certificadas pela Fundação Palmares, e um número vergonhosamente menor recebeu a titulação definitiva: 181, conforme o artigo de Selma Dealdina.

Ao eleger e reeleger seus representantes nos poderes executivos e legislativos, mas também pela corrupção e a violência armada, o latifúndio e o agronegócio impedem que o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) seja cumprido: "Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos". Bem como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que garante o direito de consulta prévia, livre e informada sobre o que possa afetar territórios e modos de vida quilombolas.

Como se não bastasse impedir o cumprimento da lei, o latifúndio mata. Entre 2016 e 2017, segundo relatório da Conaq e da Terra de Direitos, o número de quilombolas assassinados aumentou 350%. A face rural do genocídio negro.

Mas apesar de ser tão difícil para a imprensa e para determinados setores antirracistas nomear o genocídio negro, exigir o cumprimento da Constituição Federal e das normas internacionais assinadas pelo Brasil é o mínimo esperado. Preservação, proteção, certificação e titulação dos territórios quilombolas precisam, então, ser pautas prioritárias. Ou seguiremos assistindo despejos e remoções forçadas de quilombolas, sem políticas públicas específicas ou recursos orçamentários para garantir saúde, saneamento básico, moradia adequada, educação escolar quilombola e qualidade de vida aos povos negros tradicionais.

Defender a vida quilombola é também preservar modos de vida ancestrais de convivência harmoniosa entre as pessoas, a mata, a fauna e os invisíveis. Quando o capitalismo prova a cada dia que dele só podemos esperar destruição, desigualdades, cooptação e morte, nos quilombos há raízes suficientemente densas e fundas onde apoiar novas formas de existência.

Enquanto escrevo o que é necessário exigir do Estado, mesmo sem confiar neste Estado, rezo o poema de Nego Bispo:

"Fogo!...Queimaram Palmares,
Nasceu Canudos.
Fogo!...Queimaram Canudos,
Nasceu Caldeirões.
Fogo!...Queimaram Caldeirões,
Nasceu Pau de Colher.
Fogo!...Queimaram Pau de Colher...
E nasceram, e nascerão tantas outras comunidades
que os vão cansar se continuarem queimando
Porque mesmo que queimem a escrita,
Não queimarão a oralidade.
Mesmo que queimem os símbolos,
Não queimarão os significados.
Mesmo queimando o nosso povo,
Não queimarão a ancestralidade."

Para que nenhuma menina Madalena precise pedir comida de casa em casa. Para que nenhuma mulher negra seja confinada em um quartinho sem janela. Para que ninguém passe 38 anos da vida escravizado. Partilha. Vida em comunidade. Construção do território em coletivo. Compartilhamento do acesso a bens, em especial à terra.