'Coração sucumbiu': há 27 formas de morrer de calor, e verão pode ser fatal

Filipe Braga, 46, começou a passar mal depois que faltou luz em sua casa, na noite de 18 de novembro de 2023. Naquele dia, a sensação térmica no Rio chegou a 59,3ºC. Estava mais quente que no Vale da Morte, deserto na Califórnia (EUA), onde as temperaturas costumam atingir 57,8 ºC.

Sem poder ligar o ventilador, ele caiu do sofá perto da meia-noite, inconsciente e ofegante. Duas horas depois, estava morto no chão da sala.

Filipe morreu de calor, o que, segundo a OMS, já é um dos maiores problemas de saúde pública da humanidade —mata cerca de 15 milhões de pessoas por ano no mundo, muito mais do que os 489 mil óbitos anuais registrados oficialmente.

A mortalidade associada ao calor, dizem os especialistas, não é corretamente notificada na maioria dos países. Apesar de raramente aparecer no atestado de óbito como causa direta de óbitos, existem pelo menos 27 maneiras de se morrer de calor —literalmente. Em 2017, pesquisadores da Universidade do Havaí (EUA) chegaram a esse número compilando evidências médicas dos desfechos mortais causados por ondas de calor.

País vulnerável

Nesse cenário global de calor extremo, o Brasil, dizem especialistas, é especialmente vulnerável, tanto pela desigualdade sócio-econômica quanto pela falta de preparo para a nova era climática.

A casa onde Filipe Braga morava não tem ar-condicionado —item que se tornou essencial para o conforto térmico no Rio.

"As pessoas estão sofrendo por falta de infraestrutura", diz Micheline Coelho, meteorologista da USP e coordenadora do grupo internacional Multi-Country Multi-City.

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A gente já sabe do aumento do calor, mas todas as construções ainda são feitas para um clima mais ameno, que não existe mais Micheline Coelho, meteorologista

No caso de Felipe, o calor dilatou os vasos sanguíneos do corpo, alterando a pressão arterial e a espessura do sangue. Com a frequência cardíaca elevada, o coração sucumbiu.

Filipe teve um infarto causado pelo calor extremo em São João de Meriti, na região metropolitana do Rio de Janeiro. Segundo seus parentes, ele não tinha histórico de problemas cardíacos.

Falência de órgãos

Temperaturas extremas são o gatilho silencioso para a falência de sete órgãos vitais:

  • cérebro
  • coração
  • intestinos
  • rins
  • fígado
  • pulmões
  • pâncreas
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No calor, o corpo tenta equilibrar a temperatura interna desviando o fluxo sanguíneo desses órgãos para a pele. Dependendo da intensidade ou duração da onda de calor, o mecanismo de autoproteção pode levar ao suprimento inadequado de sangue nesses órgãos vitais, causando isquemias, ataque cardíaco, falência dos rins, coágulos cerebrais formados por causa do desvio do fluxo sanguíneo para a pele etc.

A temperatura também altera o funcionamento das enzimas, aumentando o risco de inflamação. A desidratação de vias aéreas aumenta o risco de infecção por bactérias e fungos. Os rins absorvem mais água, o que pode levar à insuficiência renal e infecção urinária.

"É como um filme de terror com 27 finais ruins para escolher", resumiu Camilo Mora, pesquisador da Universidade do Havaí, na apresentação de um estudo sobre os desfechos fatais relacionados ao calor.

@franka7738 Caixa d?água derretendo devido ao calor. #calor #verao #riodejaneiro ? som original - Franka77

Calor extremo é o novo normal

Este ano já é considerado o mais quente da história da humanidade. Neste momento, o Brasil enfrenta a nona onda de calor extremo, com quebra de recortes de temperatura em praticamente todo o território.

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Esses eventos são mais frequentes por causa do caos climático. Em artigo publicado em 2023 na revista britânica Nature, pesquisadores mostraram que ondas de calor desse tipo, que antes ocorriam a cada 20 anos, como anomalias, agora se repetem entre três ou quatro anos. Ou seja: o extremo é o novo normal.

Pesquisas mostram aumento na mortalidade por "causas naturais" que coincide com as ondas de calor. Em São Paulo, por exemplo, há um crescimento de 50% no número diário de óbitos quando a temperatura passa dos 29ºC, segundo estudos coordenados pelo patologista Paulo Saldiva, da Faculdade de Medicina da USP.

Mortes relacionadas ao calor geralmente ocorrem em casa. São silenciosas, mas nem por isso menos trágicas Paulo Saldiva, patologista da USP

'Outros 15 corpos'

Na segunda semana de novembro, cinco dias tiveram temperaturas acima dos 40ºC no Rio de Janeiro.

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O contador Luiz Camargo Junior, 53, lembra a dificuldade de sobreviver nesse cenário junto com seu irmão, Filipe Braga. "Ele reclamou muito. Não conseguia dormir direito e tomava vários banhos por dia para não passar mal", afirma. "Foi a semana todinha assim."

No sábado (18), quando a temperatura bateu recorde, os irmãos ligaram todos os ventiladores da casa para tentar suportar o bafo quente. Como São João de Meriti tem ainda menos áreas verdes que a capital —a paisagem mais parece um deserto de concreto e asfalto —, Luiz diz que a casa parecia um forno.

Às 23h30, a cidade inteira ficou sem energia elétrica. Os vizinhos foram para a rua, tentando escapar de seus "fornos".

Sem ventilador, os banhos se tornaram ineficazes naquela noite. Luiz estava ligando para a concessionária quando viu o corpo do irmão cair no chão. Filipe ainda tinha batimentos cardíacos e estava ofegante, mas não reagia aos chamados.

Pelo telefone, o atendente do SAMU orientou Luiz a pegar um balde de água gelada e passar no rosto e lábios do irmão enquanto a ambulância não chegava. "Quando o socorro chegou, era tarde demais", conta Luiz.

A médica que assinou o atestado de óbito observou manchas roxas no pescoço e nos braços, que revelavam a dificuldade de circulação do sangue, relacionada à temperatura.

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O corpo de Filipe ficou na sala até a empresa funerária chegar, às 4h. Um dos agentes funerários contou a Luiz que aquele não era um caso isolado na madrugada escaldante. "Ele disse que já tinha pegado aqui na vizinhança outros 15 corpos na mesma situação", lembra.

Termômetro marca 38 ºC na região central da cidade de São Paulo em meio a onda de calor
Termômetro marca 38 ºC na região central da cidade de São Paulo em meio a onda de calor Imagem: Edi Souza/Ato Press/Estadão Conteúdo

'Experimento natural'

Em desertos, é comum que pessoas morram em poucas horas devido ao calor. A temperatura elevada baixa a pressão arterial e causa convulsões, tontura, problemas de consciência e vômitos.

No caso das mortes em ondas de calor, trata-se de uma somatória de dias quentes. O risco de sucumbir é maior para idosos e crianças com menos de 5 anos.

"A gente já devia ter um plano para isso baseado nas características de cada região", diz Paulo Saldiva. "Mas no Brasil as coisas funcionam na velocidade de uma tartaruga manca."

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O pesquisador, que desenvolveu estudos sobre efeitos do calor em várias cidades brasileiras, explica que cada população tem seu limite para suportar o calor.

Por exemplo, para a população média de Teresina, a temperatura que menos afeta a saúde é a de 27 ºC. Em São Paulo, essa mesma temperatura já aumenta o número de mortes. Isso é explicado pela adaptação ao clima.

O problema é que o planeta está aquecendo mais rápido que nossa capacidade de adaptação, pondera Saldiva.

"Estamos vivendo num experimento natural em que você pega a população do planeta, com características e hábitos [de uma configuração climática específica], e vai esquentando o ambiente. Daí você conta quem morre, quem adoece e quem sobrevive", avalia ele. "É trágico."

Futuro inabitável

As prefeituras do Rio e de São Paulo anunciaram ações para mitigar os riscos do calor em dias extremos, como fornecimento de água gratuita em alguns pontos da cidade.

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Para a pesquisadora, no entanto, há muito que ser repensado, principalmente em habitação e isolamento climático (para evitar a exposição dos trabalhadores ao calor). Preparar-se, diz ela, envolve também adaptar o serviço de saúde para esse atendimento, com avisos antecipados sobre as ondas de calor.

A situação tende a se agravar. O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas alertou que, no atual ritmo de emissões de gases estufa, chegaremos ao fim do século com a temperatura global 4ºC acima do nível pré-industrial.

Nesse cenário, cidades tropicais e subtropicais, como o Rio, se tornarão inabitáveis por causa das altas temperaturas. Para quem é mais pobre e mora em áreas vulneráveis, porém, essa já é a realidade.

"A população fica mais exposta nesses locais porque há mais dificuldade financeira para adaptação", afirma Micheline Coelho, meteorologista da USP e coordenadora do grupo internacional Multi-Country Multi-City.

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