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Cristiane Segatto

A saúde de cada um depende de condições básicas de vida saudável para todos

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Imagem: iStock

Colunista do VivaBem

17/06/2020 04h00

O que são hospitais e consultórios médicos? Com exceção dos poucos que conseguem, de fato, prevenir doenças, eles não passam de oficinas de reparo. Vivem de tentar consertar os estragos provocados por condições sociais e ambientais que não podem produzir outra coisa a não ser o adoecimento.

É o conhecido e perverso ciclo disparado por tudo aquilo que os estudiosos chamam de "determinantes sociais da saúde". Coisas como poluição, pobreza, falta de educação, de saneamento básico e de acesso a vacinas, habitação ruim, alimentação sem qualidade, sedentarismo, violência, longas horas perdidas no trânsito inseguro, desemprego ou condições de trabalho insanas, racismo, intolerância etc.

Tudo isso, somado às nossas predisposições genéticas e outras particularidades biológicas, nos faz adoecer. Décadas de acúmulo de evidências científicas sobre os fatores que produzem doentes em massa nunca conquistaram corações e mentes a ponto de gerar clamor social e alterar as prioridades de investimento em saúde.

A pandemia terá esse poder?

A moral e a saúde

Foi preciso que um vírus parasse o mundo para que ele enxergasse o óbvio: sem saúde não se vai a lugar algum. Esse momento único em muitas gerações, esse choque de realidade coletivo e universal, pode ser o impulso para grandes e necessárias transformações na forma como vivemos e perdemos saúde.

É hora de perceber que a saúde de cada um depende de condições básicas de vida saudável para todos. Em um contundente artigo publicado na semana passada no Journal of the American Medical Association (JAMA), o médico Donald M. Berwick, presidente do Institute for Healthcare Improvement (IHI), propõe uma reflexão sobre os "determinantes morais da saúde".

Senso de solidariedade

Berwick, uma das autoridades mais respeitadas na área de melhoria da qualidade do atendimento à saúde, destaca a crônica falta de investimento no bem-estar humano. Segundo ele, só haverá as mudanças necessárias em seu país se o combate ao racismo estrutural e aos outros determinantes sociais da saúde for motivado por um forte senso de solidariedade social.

"Solidariedade significaria que indivíduos nos Estados Unidos podem depender um do outro para ajudar a garantir as circunstâncias básicas de uma vida saudável, assim como eles dependem legitimamente um do outro para garantir a defesa da nação", escreve.

"Se esse fosse o imperativo moral, o governo - a expressão primária da responsabilidade compartilhada - defenderia e melhoraria a saúde com a mesma energia com que defende a integridade territorial", destaca o autor. Em 2010, durante o governo Obama, Berwick chegou a administrar a agência federal responsável pelos programas Medicare e Medicaid, destinados a idosos e pessoas de baixa renda.

Agenda de ação

No artigo, Berwick propõe uma agenda de ação que pode levar à melhoria das condições de saúde dos cidadãos e convoca os profissionais de saúde a liderar o esforço de transformação. Seja falando, escrevendo artigos de opinião, trabalhando com organizações comunitárias.

"Algumas pessoas honestas e compassivas dizem que profissionais de saúde devem focar no tradicional: cuidar dos doentes. Outras, entre as quais eu me incluo, acreditam que é importante expandir o papel dos médicos e das organizações de saúde para demandar e apoiar reformas", escreve Berwick.

Entre as mudanças defendidas por ele está o acesso universal à saúde no país onde 30 milhões de cidadãos não têm atendimento gratuito ou qualquer forma de seguro privado. Crucial nos Estados Unidos, essa discussão nos leva a pensar sobre as escolhas feitas no Brasil.

Muito mais que médico e hospital

Se não tivéssemos o Sistema Único de Saúde (SUS), seriam corriqueiros, durante essa pandemia, casos como o do americano que passou dois meses internado por covid-19 e, na saída, recebeu do hospital uma conta de 181 páginas no valor de US$ 1 milhão.

É difícil imaginar quantos brasileiros já teriam sido abatidos pelo vírus, caso não pudessem contar com o SUS. Certamente, o balanço da tragédia teria superado largamente os 900 mil casos e as 45 mil mortes.

A pandemia veio demonstrar que as responsabilidades do SUS vão muito além do atendimento médico hospitalar. Uma de suas mais importantes funções é a vigilância epidemiológica, que rastreia a circulação do vírus no país e orienta estratégias para reduzir os danos. Se houve falhas até aqui, sem a experiência das equipes de vigilância epidemiológica seria o caos.

O que fazer com essa dor

Mesmo sem perceber, todos nós usamos o SUS. A pandemia veio demonstrar que dependemos dele todos os dias. Até para respirar. Se essa imensa crise impulsionar um grande surto de solidariedade, teremos transformado a dor em algo positivo.

Não basta distribuir migalhas aos pobres. É preciso perceber que não haverá garantia de saúde individual enquanto não houver condições mínimas de vida saudável para todos. Dividimos comunidades caóticas, nas quais os vírus e as doenças circulam livremente. Financiar melhorias sociais coletivamente não é sinal de bondade ou desprendimento. É prova de inteligência.