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Balé em Paraisópolis retoma aulas e usa funk para homenagear jovens mortos

Estudante do Ballet Paraisópolis - Alexandre Schneider/Getty Images
Estudante do Ballet Paraisópolis Imagem: Alexandre Schneider/Getty Images

Janaina Garcia

Colaboração para Universa

10/09/2020 04h00

"Essa vai ser uma coreografia muito pesada e que demandou bastante preparação psicológica. O que nos cabe é expressar a emoção na dança e buscar passar um conforto às famílias por meio dessa expressão artística."

O depoimento é da estudante Giovana Ferreira Guimarães, 18, nascida e criada na favela de Paraisópolis, a segunda maior de São Paulo, com pouco mais de 100.000 habitantes. A jovem integra o grupo de 22 alunos que retomaram há pouco mais de um mês, na comunidade, as aulas de balé que haviam sido interrompidas no dia 16 de março pela pandemia de covid-19.

A coreografia à qual Giovana se refere é uma das que marcam justamente a retomada das atividades e que homenageiam os nove jovens que morreram pisoteados no final do ano passado depois de serem encurralados em duas vielas de Paraisópolis, na saída de um baile funk, durante uma ação truculenta da Polícia Militar.

As coreografias "Rito" e "U Mano" vão intercalar os aspectos clássicos do balé com a contemporaneidade do funk, além dos depoimentos de lideranças de Paraisópolis e também da mãe de um dos nove jovens mortos, para proporem, respectivamente, uma "releitura poética" e um "corpo manifesto" da tragédia de 2019.

"Nós já havíamos juntado o funk com o balé no espetáculo anual de encerramento do nosso grupo, no final de 2019, no Auditório Ibirapuera. Mas foi para mostrar uma outra visão: a de que é possível, sim, dançar funk dentro do balé clássico. Uma semana depois, houve o episódio dos jovens mortos, então, decidimos falar sobre esse assunto na montagem deste ano", diz a professora e coreógrafa Monica Tarragó, fundadora e uma das diretoras do Ballet Paraisópolis.

O grupo, fundado em 2012, ficou com as atividades suspensas em função da pandemia de março até o início de agosto. Nas últimas semanas, o retorno gradual das atividades trouxe de volta aos ensaios 22 adolescentes acima de 14 anos, em duas turmas de dez e 12 alunos.

A grande maioria dos alunos do Ballet, 180, é formada por crianças e adolescentes com menos de 14 anos que ainda não retornaram às atividades. A eles, a companhia deu uma apostila com dicas de nutrição orientadas para os treinos, além de mil cestas básicas distribuídas desde abril.

A retomada das aulas foi feita na sede do grupo, um prédio de dois andares dentro da própria comunidade, e também em uma unidade emergencial adaptada no Pavilhão Social G10 Favelas, no bairro, com piso flutuante (uma espécie de piso propício para a dança e com um leve sistema de amortecimento), espelho e barras, no espaço sem paredes, mais arejado.

A diretora explica que foram seguidos protocolos das secretarias municipais de cultura e saúde para a iniciativa e que há equipe médica disponível no pavilhão, diariamente, para prestar atendimento à comunidade. Além disso, nas aulas, é obrigatório o uso de máscara facial.

Os 22 alunos que voltaram aos ensaios receberam, durante os meses em casa, uma ajuda de custo de R$ 100 para que garantir a internet e acompanhar as atividades propostas pelo grupo por videoconferência.

No conteúdo, foram incluídas coreografia, além de aulas de alongamento e nutrição. Também contaram com a participação de dez palestrantes estrangeiros, entre os as quais, a bailarina principal da Ópera Nacional de Paris, Isabelle Guérin.

Ballet foi fundado em 2012 - Alexandre Schneider/Getty Images - Alexandre Schneider/Getty Images
Ballet foi fundado em 2012
Imagem: Alexandre Schneider/Getty Images

O Ballet de Paraisópolis oferece aulas gratuitas da dança a alunos a partir de oito anos de idade.

Para Giovana, a pandemia "veio como um susto para todo mundo". "Foi bem difícil não estar com todos na sala e não sentir a energia de todo mundo. Fora que, sem professor para corrigir os movimentos e também sem os amigos, é muito difícil ficar em casa sozinha", diz ela que vive na comunidade apenas com a mãe, que trabalha o dia todo, fora de casa, como enfermeira.

A adolescente se lembra ainda assustada do dia em que os nove jovens foram pisoteados na viela perto de sua casa. "Houve muita muvuca, muito barulho, pessoas gritando, enfim, tudo muito truculento. O fato é que ouvimos funk na favela diariamente, em todos os lugares. E penso que essa é uma forma de arte como qualquer outra. Vai ser bem desafiador inseri-la no ritmo de balé", diz, animada.

Choro na última aula virtual. E na primeira presencial

"Acredito que este ano tem sido o momento mais difícil da minha vida. Foi desse amor pela dança e pelas crianças que tivemos de pensar e reformular as atividades para proceder com o máximo de segurança nessa que é uma situação complexa, mas também de aprendizado para todos", diz a fundadora do Ballet Paraisópolis.

Monica conta que, no último dia de aulas virtuais, o comunicado de que aquela seria a última atividade remota emocionou o grupo todo.

"Todos nós choramos. Foi um momento muito emocionante dizer o esperado 'vamos fazer a retomada'. Os alunos passaram pela avaliação médica. Nós, da equipe, fizemos cursos de primeiros socorros com os bombeiros e fomos, devagar, entendendo o local em que ia ser feita essa retomada. Na primeira aula em agosto, choramos todos juntos de novo."

A diretora diz que o grupo aguarda posições do Ministério da Saúde e do Ministério da Educação em relação à volta das atividades nas escolas para então definir o retorno do grupo mais numeroso e mais jovem de alunos.

"O piso da salas já está delimitado, assim como as barras. Para a nova retomada, só posso ter 12 alunos por aula. Os professores já estão contratados. Esperamos mesmo só a posição do governo para definir como proceder em relação aos demais."

Mãe de Rayssa, 16, uma das 22 alunas do grupo que recomeçou as aulas presenciais, a auxiliar de limpeza Kelly Cristina dos Santos Silva se disse aliviada com a volta das atividades da filha.

"Percebi que ela ficou muito inquieta e angustiada em casa porque sentia falta da rotina. Quando não fazia as aulas sozinha, acompanhando as atividades online, buscava brincar com a minha bebê de dez meses para distrair um pouco", conta. Kelly voltou a trabalhar recentemente, após cinco meses em casa. "A melhor coisa que já fiz foi colocar a Rayssa no balé. Isso não trouxe só conhecimento a ela, mas também bastante disciplina", diz.

2019 em NY: o auge

A pausa melancólica de quase cinco meses nas atividades deste ano contrasta com um 2019 muito movimentado na história do grupo: a convite da organização Brazil Foundation, o Ballet se apresentou no ano passado em uma conferência em Nova York e visitou algumas das casas de espetáculo mais importantes para a dança no mundo.

"Foi um momento de auge para o grupo: as crianças nunca tinham saído do país e então tiveram de tirar passaporte, visto. Em Nova York, visitaram o American Ballet Theatre e vários outros espaços icônicos para a dança, assistiram ao musical 'O Rei Leão' e conheceram as maiores escolas de dança da cidade", lista a diretora.

Um dos frutos da passagem por Nova York veio do American Ballet Theatre, uma das companhias de balé mais importantes do mundo: um convite para que uma das alunas do Ballet de Paraisópolis retornasse neste ano para uma nova apresentação.

A convidada era a estudante Isabela de Sousa da Silva, 15, aluna do grupo há cinco anos.

A Universa, a adolescente disse ter ficado "triste" com o adiamento da viagem, em função da pandemia, mas fez questão de ponderar: "Eu tinha muita expectativa para este ano, mas o mais importante é a gente se cuidar para dar conta dos planos futuros. Hoje, pelo menos, estou completamente focada no balé e sei que algumas coisas são apenas adiadas", diz ela que tem uma irmã de 17 anos e também bailarina no grupo.

"Difícil foi ter de ficar em casa esse tempo todo em quarentena. A gente perde muito sem esse contato com os amigos ao redor e sem os professores ajudando. Em grupo eu não apenas me sinto mais feliz, como até a minha autoestima é outra", diz.

A formatura da primeira turma do Ballet de Paraisópolis seria neste ano, mas, com a redefinição das atividades, foi adiada para 2021.