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Bond Girl e rainha de bateria do Carnaval: "Ser mulata não é profissão"

Adele Fátima - Arquivo pessoal
Adele Fátima Imagem: Arquivo pessoal

Breno Damascena

Colaboração para Universa

13/09/2019 04h00

"Em um momento da vida, eu fui muito famosa. Não podia nem andar na rua", lembra Adele Fátima Hahlbohm, com o sotaque carregado de quem cresceu no Rio de Janeiro. Mais especificamente no bairro da Urca, onde morava com a mãe, negra, e o pai, alemão.

"Na minha criação, nunca existiu cor, sempre existiu amor", diz. Foi na adolescência, quando o pai morreu, que ela precisou encarar de frente um ambiente de discriminação e preconceitos.

O luxo e os privilégios que até então faziam parte da sua vida se tornaram escassos. "Tive que mudar do ouro para o metal mais barato. Não houve tempo hábil para reagir ao choque."

O famoso show de mulatas comandado por Oswaldo Sargentelli foi o primeiro passo de Adele na vida artística, mas o que alçou seu nome ao estrelato foi um comercial de sardinhas gravado em 1978. No vídeo, ela aparece dançando de biquíni amarelo na praia do Recreio. A campanha publicitária fez um sucesso estrondoso e impulsionou sua carreira --até internacionalmente.

Adele Fátima se apresentando no show de Oswaldo Sargentelli - Arquivo - Arquivo
Adele Fátima se apresentando no show de Oswaldo Sargentelli
Imagem: Arquivo

Adele foi convidada para atuar no filme "007 contra o Foguete da Morte" (1979) ao lado do ator Roger Moore. Ela conta que chegou a gravar cenas, mas a sua participação teria sido cortada porque a mulher do ator inglês era contra sua presença. "Fui toda empolgada assistir ao filme no cinema, me sentindo a bond girl brasileira. E aí minha cena não passou. Entrei em desespero, comecei a chorar e fui embora."

Para a artista, a culpa foi da imprensa brasileira, que espalhou o falso boato de que ela teria se envolvido com o ator. "A mídia era tão carente de assunto, acabavam colocando qualquer besteirol. Diziam que, após o filme, nós iríamos fugir juntos, uma mentira. Eu deixei de viajar o mundo por causa dessa notícia maldosa. Para mim, foi a maior maldade que já fizeram com um artista", lamenta.

Na revista Fotos e Gente - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Na revista Fotos e Gente
Imagem: Arquivo pessoal

A mágoa de Adele, porém, vai além disso. "Até hoje, a imprensa não me respeita. Refere-se a mim como mulata: isso não é profissão. Pode colocar atriz, modelo e até superstar, mas fazem questão de esconder meus méritos", diz. "Falam que sou atriz pornô. Atuei em 18 filmes, quatro deles internacionais. Cinco eram pornochanchadas, mas isso não é pornô", afirma.

Um dos filmes a que a artista se refere é "Histórias que Nossas Babás não Contavam" (1979), paródia da história de Branca de Neve, em que viveu a protagonista Clara das Neves. O longa foi sucesso de público e se tornou um clássico da pornochanchada.

Na época, Adele também posou para revistas masculinas brasileiras e até internacionais. "Era um nu profissional, tinha arte. Eu sou adepta do nudismo, mas não frequento no Brasil porque as pessoas não têm cabeça para isso. Então, pratico na Europa."

"Julio Iglesias era ciumento. Eu sou livre"

A notoriedade de Adele era tão significativa naquele período que até a festa mais importante do país foi impactada pela sua presença. Ela reivindica o título de primeira rainha de bateria do Carnaval, pela Mocidade Independente de Padre Miguel. E o arquiteto Oscar Niemeyer teria se inspirado nas curvas do seu corpo para criar a Praça da Apoteose no sambódromo carioca.

Adele foi a primeira rainha de bateria no carnaval brasileiro - Arquivo - Arquivo
Adele foi a primeira rainha de bateria no carnaval brasileiro
Imagem: Arquivo

Nem mesmo um dos cantores mais populares da época resistiu aos encantos de Adele. Ela diz que conheceu Julio Iglesias em 1978, na Copa da Argentina, onde começaram um relacionamento. "Mas não gostei das exigências que ele fazia. Queria que eu usasse cabelo preso, parasse de usar roupas justas, não podia nem usar maquiagem. Ele era muito ciumento. Eu sou livre", explica. Ela também recusa a alcunha de símbolo sexual. "Nunca quis isso, sempre quis ser Adele".

Avó de duas crianças, a artista de 65 anos está casada há mais de 40 com o engenheiro Marcelo Carneiro. Ela conta que a gravidez do filho primogênito, Diogo, foi descoberta no meio de uma turnê com sua banda, em que apresentava canções da MPB. "Eu amo cantar. A gente fica com a alma lavada e as pessoas ficam encantadas. Interpreto canções que falam de amor e conquistas. Levo para o público o que eles querem ouvir".

A relação de Adele com a música foi ainda mais profunda. Jorge Ben Jor homenageou a modelo com a canção "Adelita", de 1979, que teve direito até a apresentação especial de clipe no Fantástico. E, mais recentemente, ela foi reverenciada por Neguinho da Beija-Flor em "Vovó Filé".

Não podia se casar porque pertencia ao mundo

Ao falar da segunda filha, porém, sua voz fica trêmula. Bárbara morreu de câncer em 2001, quando tinha 18 anos. "Estávamos conversando, ela disse: 'Mãe, não consigo respirar', e caiu. Levaram ela para o hospital e eu nunca mais a vi", comenta. "Com uns 12 anos, ela me dizia que queria ser a melhor cirurgiã do mundo. Tinha medalha de ouro no clube militar e na natação. Era uma atleta. Com sete anos, já dava entrevistas", diz, orgulhosa.

"Não fui ao enterro dela. Só consegui levantar da cama no sétimo dia. Minha vida é lotada de perdas e eu ainda não aprendi a lidar com isso." Até começar para começar a família Adele teve que enfrentar alguns entraves, como quando um amigo falou que ela não poderia se casar. "Ele disse que eu pertencia ao mundo."

Para Adele, essas cobranças são fruto da discriminação. "Achavam que eu não tinha esse direito por ser mulata. Quando falavam alguma coisa, era sempre com ironia. Sofri e continuo sofrendo machismo, preconceito e discriminação. Acreditam que as pessoas de cor pertencem à favela e não têm educação." Ela diz que, por isso, nunca teve espaço para mostrar seu verdadeiro potencial.

"Ainda me considero virgem no sentido de fazer um trabalho prestigiado no cinema, na TV ou no teatro. Mas me guardo porque tudo tem sua hora", diz, esperançosa. Enquanto isso, Adele se prepara viajando e estudando novos idiomas, costumes e países.

Profissionalmente, conta que está ocupada com o roteiro de um filme sobre a sua vida. "Será uma obra complexa e eu narrarei toda a história", adianta. Também se prepara para fazer um musical. "Será o 'Adele para Maiores'. Canto, danço, interpreto e mostro tudo o que aprendi desde o começo da minha carreira. Vai surpreender muita gente", diz sobre a peça, que deve estrear entre no começo de 2020.

Da garota que perdeu o pai aos 15 anos até se tornar a mulher que é hoje, Adele precisou superar muitos obstáculos e não esconde seu orgulho. "Tive reconhecimento do público e estou no imaginário das pessoas. Isso me gratifica muito. Eu custei muito para ser Adele e me manter assim."