A vida da mulher que substituiu o marido na Chape após a tragédia

Cleberson Silva era o assessor de imprensa da Chapecoense. Aos 39 anos, ele morreu no acidente aéreo de novembro de 2016, que fez 71 vítimas. Desde então, quando o clube catarinense ficou sem presidente, comissão técnica e maioria dos jogadores, Sirli Freitas, 33, assumiu o posto que pertencia ao marido na Chape.
O assessor deixou a mulher e dois filhos, Pedro, 9, e Mariana, 3, que estudam na frente da Arena Condá, em Chapecó. Assim como o pai fazia, hoje é a mãe que os busca na escola após um dia de trabalho. Menos de um mês após o desastre, ela já exercia as funções que eram de Cleberson.
“O Plínio [presidente] me ligou e eu não falei de salário ou condições de trabalho. Simplesmente, aceitei. Estava desesperada e queria estar aqui dentro [da Chapecoense].” Quando recebeu o telefonema, a jornalista, até então repórter e fotógrafa do “Diário Catarinense”, estava no clube recolhendo os pertences do marido.
“Eu me sinto muito bem por fazer o que ele fazia e por vivenciar coisas que ele vivia com os colegas. Há momentos de muita dor, mas seria mais doloroso se eu não pudesse estar aqui.”
A presença de Cleberson está na maioria das atitudes que Sirli toma no trabalho. Os jornalistas estavam juntos havia 14 anos e se conheceram quando ela estava começando a faculdade e ele já trabalhava na área. “Aprendi muito com meu marido, éramos grandes amigos. Ele me ajuda muito ainda. Sempre trocamos experiências da profissão. Então, me lembro das nossas conversas.”
A rotina é puxada. O trabalho faz o tempo passar mais depressa e ajuda a chorar menos. “Dar continuidade ao trabalho dele me fez ficar ‘menos pior’. Consegui achar meu caminho. Poderia estar perdida, sem saber o que fazer e sofreria ainda mais. Foi minha fuga, minha saída.”
Sirli é uma das poucas mulheres que trabalha como assessora de times de futebol. O ambiente predominantemente masculino é conhecido pelo machismo e afasta o sexo oposto. Entretanto, ela acredita que sua história proporcionou um grande respeito de todos.
“Tenho um apoio enorme dos dirigentes e jogadores. Não tive nenhum episódio que me fizesse sentir mal. Sou muito respeitada e me sinto bem, à vontade. Tenho consciência de que é um grupo específico, mas também acredito que sou eu que faço essa relação, mostro meu trabalho, minha competência.”
“Ser mãe é a parte mais difícil, confesso”
“Ter filhos ajuda. É por eles que eu sigo, luto e trabalho. Preciso ser forte por eles. Mas a fase inicial é muito pesada. Se nós questionamos, não entendemos, imagine eles? O mais velho, Pedro, surtou. Teve acompanhamento psicológico desde o começo, mas até hoje sofre e chora. A pequena, a princípio, não sentiu tanto. Por mais que eu explicasse, ela sempre perguntava do pai como se ele estivesse vivo, dizia que não ia dormir enquanto ele não chegasse. Eu falei que o Cleberson tinha virado uma estrelinha e, por isso, tudo o que ela fazia saía e mostrava para o céu. Em junho, tivemos 13 dias de chuva consecutivos em Chapecó. Nesse período, que não dava para fazer isso, ela ficou doente. Passou um dia internada, fizemos todos os exames, e ela não tinha nada físico.”
“Eu sempre quis ir até o local do acidente. Quando fui, fechei um ciclo. Finalmente consegui dizer adeus”
“Em maio, fomos para a Colômbia para o jogo da Recopa [competição entre o campeão da Libertadores da América e a Copa Sul-Americana]. Fiquei fazendo a assessoria dos sobreviventes e fomos ao local do acidente. Eu queria muito ir, queria ver e ouvir as pessoas que ajudaram no resgate. Foi um misto de sentimentos porque eu estava com as pessoas que sobreviveram, então revivi com eles todas as histórias. Foi o tempo todo revivendo aquilo e foi muito forte. Ao mesmo tempo, festejamos muito a vida deles, foi um milagre. Eu não sabia qual seria minha reação ao chegar, mas vi um lugar que parecia bem menor do que tinha visto na televisão e fotografias até então. Chegamos lá, apenas o pessoal da Chapecoense, sem imprensa. Apenas alguns subiram o morro e eu fui, precisava desse momento para rezar e sentir.
“Não é força, é necessidade. Ninguém está preparado para a morte”
“Nunca tinha perdido ninguém próximo. É um momento que você fica sem chão e precisa refletir sobre a sua vida. Existem muitas fases de negação, questionamentos, busca por razões para entender. Ao mesmo tempo que festejei a vida dos sobreviventes, pensava porque o Cleberson não podia estar aqui, ser um deles.... Acho que o caminho é entender que a decisão não passa por você, não está nas suas mãos. Para mim, restou buscar alternativas para conviver com a dor. Eu me apeguei nos meus filhos e no trabalho.”
“Entendemos a dor uma das outras”
“Como o Cleberson fazia parte do grupo dos atletas e da imprensa, transitava entre os dois, eu estou em ambos. Saio para jantar com as mulheres da Chape, conversamos. São pessoas que sentem a mesma dor que eu, passaram por tudo igual, no mesmo momento. Esse grupo ajuda muito, nós nos entendemos e trocamos figurinhas, principalmente sobre como lidar com as crianças.”
“A palavra futuro mudou totalmente o sentido para mim”
“Eu e o Cleberson planejávamos tantas coisas, estávamos acabando de construir a nossa casa, íamos passar o fim do ano no Rio de Janeiro e, de repente, num estalar de dedos, tudo acabou. Hoje não consigo visualizar muito à frente, não penso muito longe, mesmo coisas próximas, como uma viagem. Só consigo pensar no hoje, no que me faz bem. Quero criar e viver bem com meus filhos e trabalhar. É só isso.”
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