Gays são as vítimas esquecidas do ditador espanhol Francisco Franco
Durante décadas, a ditadura franquista perseguiu aqueles que ousaram desafiar seu modelo nacionalista e católico de sociedade na Espanha. Entre os "inimigos" estavam os homossexuais, que hoje buscam reparação. Maria de los Dolores Gamez, de 81 anos, está parada ao lado da grande porta de um prédio em decadência. Ela olha para uma placa – de tão alta, é preciso se colocar na ponta dos pés para lê-la. A inscrição relembra a "injustiça histórica" sofrida por gays nesta antiga prisão da cidade de Huelva, no oeste da Andaluzia.
Não é a primeira vez que Gamez ouve falar sobre minorias sexuais presas e maltratadas aqui. Mas ela jamais havia reparado neste pequeno memorial. Ele foi instalado neste ano, quase quatro décadas após relações entre pessoas do mesmo sexo terem sido descriminalizadas na Espanha, em 1979.
"Eu acho bom que os políticos finalmente comecem a tratar sobre essas questões", diz Gamez. "Tivemos muitos anos de silêncio."
No mês passado, o governo espanhol aprovou um decreto para desenterrar os restos mortais do ditador e general Francisco Franco do controverso memorial Vale dos Caídos. O Parlamento deu seu aval apesar de liberais e conservadores terem se abstido.
A questão gerou debate num país que, segundo as estimativas, possui mais de duas mil valas comuns. Elas remontam à guerra civil (1936-1939), um conflito considerado por muitos historiadores como um prefácio da Segunda Guerra Mundial. A guerra marcou o início de um período de décadas de governo autoritário e repressão política que só terminou depois que eleições livres foram realizadas, em 1977.
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Além de visar opositores políticos, o regime de Franco também perseguiu aqueles que ousaram desafiar seu modelo nacionalista e católico de sociedade. De acordo com historiadores, a ditadura franquista tinha duas prisões "especializadas" para aqueles condenados pela legislação homofóbica: uma em Huelva e outra em Badajoz, na fronteira com Portugal, na região ocidental da Extremadura.
Antoni Ruiz, nascido em 1958 em uma pequena cidade na província oriental de Valência, estava entre eles. Aos 17 anos, ele se assumiu como homossexual perante sua família, e uma freira o denunciou à polícia. "Foi aí que meu martírio começou", conta. Ruiz foi então levado para diferentes penitenciárias, até acabar na prisão de Badajoz. Legalmente, ele ainda não era maior de idade.
Os três meses que passou no local pareceram uma vida inteira. "Ninguém me dava emprego", relata. Ele era criminoso e homossexual, e a polícia fazia questão de informar seus possíveis empregadores sobre o fato. Ruiz lembra que, como tantos outros, foi impedido de se desenvolver profissionalmente, lutou para sobreviver e se sentiu socialmente excluído.
As vítimas querem que seus registros criminais discriminatórios sejam removidos do sistema de computadores da polícia. Ruiz e outros colegas ativistas também querem reparações econômicas para as vítimas LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e intersexuais) das duas leis que criminalizaram essa minoria entre 1954 e 1979.
Não é um processo fácil, pois a vítima precisa passar por um processo judicial individual. Às vezes, isso pode ser complicado, diz Ruiz, pois os registros nem sempre falam de atos homossexuais, apesar de ser este o motivo da prisão. Conforme dados de sua organização, os quais foram confirmados pelo governo no ano passado, apenas 116 pessoas conseguiram obter indenização do Estado. Historiadores estimam, no entanto, que pelo menos 5 mil pessoas foram condenadas mediante tal justificativa.
Ramon Martinez, autor de um recente ensaio sobre a história do ativismo LGBTI na Espanha, acredita que ainda há muito a ser feito no país no sentido de se fazer justiça a esses cidadãos. Ele cita o exemplo do presidente alemão Frank-Walter Steinmeier, que em junho pediu desculpas em nome de toda a Alemanha pelos maus-tratos históricos aos gays.
O Reino Unido, por outro lado, emitiu em 2017 um perdão póstumo a gays sob a chamada lei Alan Turing (em homenagem ao decifrador de códigos da Segunda Guerra Mundial condenado por atentado violento ao pudor em 1952 e perdoado postumamente em 2013). Tanto Martinez quanto Ruiz criticam a abordagem britânica. "Quem eles estão perdoando? Foi o Estado que cometeu uma violação dos direitos humanos", diz Ruiz.
Martínez ressalta a urgência em se trabalhar na memória coletiva da Espanha: "Ao contrário de Berlim, Amsterdã ou Colônia, nenhuma cidade espanhola tem um memorial para as vítimas LGBTI da ditadura de Franco". Ele diz que é importante destacar a importância de locais como a antiga prisão em Huelva, que agora se encontra em ruínas e está fechada ao público e à imprensa.
Questionada a respeito de seus sentimentos em relação a um lugar como este no meio de sua cidade natal, María de los Dolores Gamez relembra um poema que leu enquanto ajudava sua neta com o dever de casa de literatura:
Allá, allá lejos; donde habite el olvido (lá, lá longe, onde habita o esquecimento).
Os versos foram escritos pelo poeta Luis Cernuda, notório homossexual exilado após o golpe militar. Ela agora se pergunta se tais vítimas são sequer mencionadas nos livros didáticos: "Isso não é justiça, de forma alguma", diz, antes de retomar sua caminhada noturna pela vizinhança.
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