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Fé e resistência: macumbeiras lideram terreiros e lutas sociais

Como mulheres de santo, senhoras do ilê, sacerdotisas ou herdeiras do axé, elas conquistaram protagonismo na religião, mas que não ficou restrito aos terreiros - Revista AzMina
Como mulheres de santo, senhoras do ilê, sacerdotisas ou herdeiras do axé, elas conquistaram protagonismo na religião, mas que não ficou restrito aos terreiros
Imagem: Revista AzMina

Aymê Brito

03/02/2022 04h00

Perseguição às religiões de matriz africana, como candomblé e umbanda, também se dá pela forte presença de mulheres e minorias

"Exu (...) exerce forte domínio sobre as mulheres e as moças", dizia uma coluna de opinião no jornal "O Estado de São Paulo" em 1973. Escrito no período da Ditadura Militar (1964-1985), o artigo demonizava as religiões de matriz africana e demonstrava preocupação que as mulheres abandonassem o lar em troca da vida nos terreiros. Quase cinco décadas depois, o machismo e o racismo seguem presentes na vida das que escolhem fazer parte das religiões afro-brasileiras, mas elas resistem.

Não é comum vê-las em cargos de liderança em outras religiões, como na Igreja Católica, com padres e papas homens. Já nos terreiros, as mulheres quase sempre são maioria, ocupando os postos mais altos. Quem frequenta os barracões, como também são chamados os terreiros, percebe isso.

Seja como mulheres de santo, senhoras do ilê, sacerdotisas ou herdeiras do axé, elas conquistaram um protagonismo que não ficou restrito aos terreiros. "Axé Muntu" é uma expressão criada pela intelectual Lélia Gonzalez — uma mistura das línguas Iorubá (axé: poder, energia) com o dialeto Kimbundo (muntu: gente). A socióloga e ativista usou muito de sua vivência como mulher do candomblé na produção intelectual que fez sobre a vida e posição das mulheres negras na sociedade brasileira.

Nesta reportagem, trazemos as falas de Mãe Du, Nailah, Kenya e Renata, que, assim como Lélia, mostram que a influência dos povos de terreiros pode ser encontrada hoje no espaço acadêmico, na militância, na política, na culinária e em vários outros campos da sociedade.

Num país marcado por profundas desigualdades sócio-raciais como o Brasil, os terreiros e as mulheres à frente deles — as macumbeiras, como elas mesmas se denominam — desempenham um papel social muito além da religião. Elas realizam uma "feitiçaria" ao conciliar a tradição de diferentes povos, resistir às opressões e ajudar a proporcionar um espaço de acolhimento a quem sempre foi excluído.


Perseguição à cultura e às mulheres

A perseguição aos terreiros e barracões, que já dura mais de 500 anos, e as campanhas de difamação na imprensa geraram uma falta de conhecimento generalizada. "A umbanda, com seus sucedâneos e religiões assemelhadas, é entre nós um subproduto da ignorância associada à politicalha. Seu terreno de eleição já foi o quilombo e o mocambo. Modernamente é a favela e o escritório eleitoral" — dizia mais um trecho da coluna do jornal paulista, publicada logo após uma festa em comemoração ao Dia de Oxóssi.

Kenya Odara - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Kenya Odara (primeira da direita), frequenta terreiro de candomblé só para mulheres. "Não nos preocupamos só com a questão religiosa, toda a nossa existência é política"
Imagem: Arquivo pessoal

Noticiários racistas como esse não eram, e não são, raros. Resquícios de uma sociedade que até 1832 obrigava todos a se converterem à religião oficial do Estado. Na época, era a cristã. Isso fez com que outras expressões religiosas fossem criminalizadas, sofrendo com opressão policial e apreensão de objetos sagrados, que até hoje nunca foram devolvidos.

A cientista política e praticante do candomblé, Nailah Neves, Ìyàwó ty ???un, afirma que essa perseguição também era resultado do fato de as mulheres serem maioria e liderarem as casas de axé.

"Terreiros, quilombos e escolas de samba, que eram espaços de resistência e de valorização da cultura negra matriarcal, eram um grande risco para o projeto eugenista e patriarcal do Estado brasileiro."

Mesmo passados 34 anos da Constituição Federal que, em seu artigo 5º passou a garantir a liberdade de crença e proteçao aos locais de cultos religiosos diversos, a discriminação não teve fim. Um estudo da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, do Rio de Janeiro, apontou que, em 2021, 91% dos ataques que ocorreram no estado eram contra as mesmas religiões, as de tradição africana.


Ensinamentos da pombagira

Embora as investidas contra os afrorreligiosos não tenham sido poucas, os terreiros e as mulheres continuam passando de geração em geração os preceitos e fundamentos do povo de axé. Renata Pallottine, 36, é bisneta de Dona Maria, Mãe de Santo, de uma casa de umbanda no interior de São Paulo, e cresceu aprendendo os valores civilizatórios desta comunidade.

Advogada pelos direitos das mulheres e atuante no combate ao racismo religioso, Renata atualmente é responsável pela área jurídica do coletivo Terreiro Resiste, movimento de defesa das comunidades tradicionais. Hoje, como uma das filhas de santo mais velhas de um terreiro na capital paulista, ela conta que foi essa vivência que contribuiu para o seu engajamento na luta:

"Quem nasce umbandista já aprende com a Pombagira que a desigualdade de gênero mata, aniquila e silencia, e que mulheres, sobretudo as racializadas, devem ocupar lugar de poder e decisão dentro das nossas comunidades."

A Pombagira é uma das entidades cultuadas nessas religiões, que representa as encruzilhadas e é conhecida por simbolizar uma figura feminina ligada ao prazer e à liberdade sexual. Renata explica que a figura da pombagira em muitos lugares é temida exatamente por romper com a lógica patriarcal: "Mulher que poeticamente nos ensina a autonomia dos corpos femininos".

Renata também chama a atenção para a história dessas religiões, que vêm de uma cultura de valorização de povos ancestrais socialmente excluídos, mas passou por um forte embranquecimento nos últimos anos. "Em 1908, um homem branco, militar, espírita, de São Gonçalo, teria fundado a religião só porque deu nome às práticas que já existiam nos morros cariocas. Como é possível fundar algo que já existe?", questiona a advogada.

A família de santo

Eu, repórter desta matéria, cresci ouvindo as histórias das macumbeiras contadas por Elza Mendes, baiana de 72 anos, mulher negra e minha avó. Ela lida com a ignorância da sociedade sobre sua cultura há pelo menos 50 anos. "Ninguém vê com bons olhos, ainda hoje as pessoas têm muito medo, acham que é magia", desabafa. Mas ressalta, sempre, o sentimento que há no terreiro de pertencer a uma comunidade.

Hoje candomblecista, Elza foi a primeira a se tornar uma Iaô num dia de feitura, recebendo o título de dofona.

Entenda:

  • Iorubá: é um grupo étnico-linguístico da África Ocidental, principalmente na Nigéria e no Congo. Varia conforme o local e é usada nos rituais de matrizes africanas.
  • Feitura no santo: é a iniciação de alguém no culto aos orixás. Pode vir com novo nome e assume novas funções. O ritual varia segundo a religião e pode durar até três meses.
  • Orixás (em iorubá: Òrì?à): divindades representadas pela natureza, acredita-se que tenham existido anteriormente em Orum (céu em iorubá).
  • Aborós: orixás de energia masculina. Podem ser incorporados por pessoas de todos os gêneros.
  • Ayabás: orixás de energia feminina. Podem ser incorporados por pessoas de todos os gêneros.

Dona Elza conta que, quando se começa a fazer parte de um terreiro, você se torna também integrante de uma família de santo. "Tanto é que a gente diz irmão, tio, filho de santo", comenta. Em muitos lugares os terreiros são conhecidos por serem receptivos a todo tipo de gente. "Uma mãe de santo nunca deixa de acolher um filho, mesmo se não tiver onde morar, será bem recebido no terreiro."

Esse acolhimento está intimamente ligado à presença das mulheres na religião e a própria história dos negros no Brasil, conforme explica a pesquisadora Jacyara Silva, professora e coordenadora do núcleo de estudos afro-brasileiros da UFES (Universidade Federal do Espírito Santo). "É importante lembrar que as famílias dos negros que chegavam ao Brasil eram separadas por estratégia de dominação."

Após o sequestro da população negra do continente africano, a formação das "famílias de santo" foi o jeito encontrado para preservar a identidade cultural e reconstruir essa ideia de família que havia sido destruída na escravidão. As grandes responsáveis por refazer esses laços familiares, dentro das religiões afro-brasileiras, foram as mulheres negras, as Yalorixás. Os barracões passaram a se tornar presentes na maior parte das regiões periféricas do país, acolhendo as pessoas que eram estigmatizadas pela sociedade, como mães solo e o público LGBTQIA+.

"Não quer dizer que não existam nos terreiros os mesmos problemas que existem fora deles", explica Jacyara. As religiões de matriz africana estão inseridas dentro de uma sociedade onde racismo, machismo e transfobia são estruturais. Por isso, o cotidiano dos terreiros não está isento dessas questões. "Pode estar na estrutura, mas não é institucionalizado", pondera a pesquisadora.


Debatendo fora dos terreiros

Maria do Carmo, Omó de Omolú Iemanjá Oxalá, conhecida como Mãe Du, é uma das mulheres à frente de um terreiro de umbanda na cidade de Viçosa, interior de Minas Gerais. Apesar do grande respeito que conquistou entre os seus, teve que encarar o preconceito das mães e professoras da escola em que a sua filha estudava. "As pessoas ficaram meio cismadas", conta.

A força de seguir por mais de 20 anos na defesa dos povos de terreiros vem da crença de que o amanhã será melhor que o hoje. A trajetória dela no culto aos orixás já tem, na verdade, 50 anos. "Fui a primeira Yaô daqui, andei pela cidade toda de branquinho". Atualmente, Mãe Du está na umbanda, mas foi iniciada dentro do Candomblé, onde teve que passar por diversos processos até se tornar de fato uma Iaô — filha de santo. Se tornar feita no santo é uma vitória para a maioria das mulheres de axé, por ser um processo de várias etapas, que requer muito tempo de dedicação e prática dentro do terreiro.

Ela também é líder espiritualista e integra o Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial de Viçosa. Os cargos fora do terreiro são um marco e uma representação importante para quem é de religiões de matriz africana, mas também são espaços arriscados. "Defender aquilo que se é, hoje em dia, é perigoso, principalmente, para nós mulheres."

O preconceito acaba afastando outros praticantes dos encontros e debates religiosos, por preferirem se resguardar. Mas, Mãe Du, que tem viajado nos últimos de anos para falar das religiões de matriz africana em universidades, sente que agora as pessoas começaram a querer entender mais sobre sua cultura.


Hierarquia ancestral

Em boa parte da tradição africana, a hierarquia não se baseia no gênero, mas sim na experiência e conhecimento. "O matriarcalismo é natural de vários povos africanos, até porque a hierarquia não é por gênero como os europeus impuseram, é por ancestralidade", explica a candomblecista Nailah Neves.

As religiões de matriz africana não dividem o mundo entre bem e mal, emoção e ciência, corpo e alma, homens e mulheres. Nailah argumenta que essa lógica binária foi imposta aos povos que estavam sendo colonizados, por influência do eurocentrismo cristão. Existe na umbanda e no candomblé uma outra forma de ver e se relacionar com o mundo. "Não são apenas religiões, são povos e comunidades tradicionais, assim como são os quilombos."

As religiões afro-brasileiras que conhecemos hoje são fruto das características de diversos povos africanos que se encontram no país e, exatamente por isso, elas variam conforme a nação ou tradição de origem, como acontece no caso do Candomblé, da Umbanda, do Batuque e do Xangô.

Sem nenhum tipo de livro oficial, como a Bíblia, os fundamentos são passados por gerações via tradição oral, e nem sempre são os mesmos em todos os lugares. Os preceitos e costumes não estão "escritos em pedra''.