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Pandemia dá impulso a empresas de tecnologia que cuidam da nossa morte

Marcel Lisboa/UOL
Imagem: Marcel Lisboa/UOL

João Paulo Vicente

Colaboração para Tilt

04/09/2020 04h00

No final de 2018, em uma viagem a trabalho para Tangará da Serra (MG), tive que encarar três horas de carro no escuro em uma estrada apertada, esburacada e cheia de caminhões. Na noite anterior, tive um sonho bastante realista com um acidente fatal. Resultado: acordei de madrugada para enviar um email para uma pessoa confiável com todos os meus dados bancários, senhas, quem me devia (muita gente), e quanto deviam (muito pouco).

Eu não morri, mas pessoas morrem o tempo inteiro. Julho foi o mês com o maior número de óbitos registrados no Brasil nas últimas décadas: 133.620, 27.744 dos quais causados pelo novo coronavírus. Para contornar esse cenário, novas empresas apostam em tecnologia para criar uma transformação cultural: fazer com que você planeje vivo o que vai acontecer depois que morrer. Algo como o que fiz há dois anos, mas de um jeito mais profissional.

Além da tristeza e saudades, os mortos deixam problemas burocráticos, dúvidas fúnebres, rastros digitais e várias outras questões que precisam de mais que um email premonitório para resolvê-las.

O ramo da death techstartups que se apoiam em tecnologia para facilitar o trato com a morte— decidem coisas como a escolha do caixão, qual tipo de cerimônia será feita, o destino das redes sociais, testamento, e até como a pessoa gostaria de ser lembrada.

"Nós consideramos que há 90 etapas, 90 decisões que precisam ser tomadas depois que uma pessoa morre", conta Layla Vallias, cofundadora da Janno, plataforma brasileira de planejamento para o fim da vida fundada no final de 2019. "Se você não toma essas decisões antes, alguém vai tomar para você", diz.

"Hoje, esse setor ainda é muito engessado, muito pouco tecnológico, mas movimenta bilhões por ano e tem um impacto enorme na nossa vida", explica Vallias. O Sindicato dos Cemitérios e Crematórios Particulares do Brasil (Sincep) avalia o mercado da morte em R$ 7 bilhões no país. Estima-se que cada um de nós vai perder em média seis pessoas próximas.

No entanto, frente a um tema tão delicado, as death techs cresciam com certa timidez nos últimos anos na Europa e Estados Unidos, e praticamente inexistiam no Brasil. Mas a dimensão da pandemia da covid-19 tornou impossível evitar falar da morte (e da incompetência de políticos ao redor do mundo).

Vai tocar Roberto Carlos ou Lady Gaga no funeral?

A Cake, uma empresa americana que permite fazer um planejamento da morte de maneira gratuita, viu o número de acessos no seu site quadruplicar desde o começo da pandemia. Apesar de não saber quantos usuários estão cadastrados para usar o seu serviço, a executiva-chefe Suelin Chen conta que nos últimos meses foram pelo menos 10 mil acessos vindos do Brasil.

A empresa oferece um formulário com cinco campos:

  • Funeral ("quais detalhes do seu funeral são importantes" e "onde você quer que seu funeral aconteça", por exemplo);
  • Legado ("pelo que você gostaria de ser lembrado" e "o que você gostaria que as pessoas fizessem nos aniversários da sua morte?");
  • Saúde ("você é doador de órgãos?" e "se outras pessoas tiverem de tomar decisões de saúde por você, o que precisam saber?);
  • Digital ("qual destino das suas contas de e-mail quando você morrer?" e "como seus entes poderão acessar suas contas e dispositivos quando você morrer?");
  • Legais ("você tem seguro de vida?" e "você tem um testamento?"). Há ainda um campo documentos e arquivos importantes.

"É claro que há muita dor e luto inevitável quando alguém morre", diz Suelin Chan, da Cake. "Mas também há sofrimento que pode ser evitado, como a preocupação se você está ou não agindo de acordo com os desejos dessa pessoa, ou tendo que correr atrás de papelada e documentação."

Suelin conta que a maior parte das pessoas está preocupada com os aspectos mais práticos desse planejamento. No entanto, também há bastante procura por questões menos objetivas, como posts de despedida em redes sociais.

"Há pesquisas que indicam que a maior demanda sobre finitude é o legado que as pessoas vão deixar, conselhos, aprendizados, como vai ser lembrado quando não estiver aqui", diz Vallias, da Janno.

Por outro lado, adiantar pequenas coisas também é importante. "Se você já decidir qual a cor do cetim do caixão, se vai tocar Roberto Carlos ou Lady Gaga no funeral, você tira um peso do ombro de quem está organizando, é um ato de amor para quem fica."

Espaço para o luto

Esse tipo de planejamento repagina algo que já era feito por muita gente. Mas organizado dessa forma, traz algumas garantias extras: que as orientações vão ser encontradas (e não ficar perdidas numa gaveta, por exemplo) e que serão enviadas para as pessoas certas.

Como consequência, o responsável por lidar com a burocracia do pós-morte fica livre para encarar o luto sem preocupações mundanas. "Nós trabalhamos para minimizar o sofrimento evitável para que as pessoas que perderam alguém possam se focar em honrar a vida", diz Suelin.

No entanto, isso é apenas a ponta de lança do que as death techs propõe como um todo: encarar a morte de uma forma mais natural. "Enquadrar a vida de maneira que as pessoas possam valorizar o que é mais importante para elas em vida", continua Suelin Chan, da Cake. "No fim das contas, planejar o fim da vida é sobre pensar no que a faz valer a pena para você e para suas pessoas amadas."

Para Layla, da Janno, hoje é mais fácil para pessoas acima dos 50 anos alcançar essa perspectiva. Por conta disso, a plataforma brasileira foi criada com uma usabilidade acessível mesmo para um público não tão familiarizado com tecnologia. Daí para alcançar uma fatia mais ampla da sociedade é um pulo. Resta saber se, na ressaca do novo coronavírus, finalmente vamos ter estômago para falar da morte.