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Opinião

1ª grande lei para IA nasce na Europa e joga pioneirismo do Brasil no ralo

O ChatGPT era um sonho distante da OpenAI, o Google não dava mostras de adotar inteligência artificial em seu motor de busca e o Github, da Microsoft, tinha lançado seu Copilot fazia alguns meses. O ano era 2021. E, em setembro, o Brasil aprovava na Câmara dos Deputados um projeto de lei que regulamentava o uso de IA por aqui.

Corta para 2024. Nesta terça-feira (21), foi aprovada a primeira grande lei do mundo a estabelecer regras para a tecnologia. Ela deve orientar outras legislações pelo mundo. Mas não estamos falando da regra do Brasil e, sim, de uma da União Europeia.

O que aconteceu para o Brasil sair da "pole position" e ir parar no comboio dos carros que só acompanham a discussão?

Elaborado pelo deputado Eduardo Bismarck (PDT-CE) e relatado pela deputada Luisa Canziani (PTB-PR), o PL 21/20 atribuía ao Executivo o fomento ao ecossistema de IA, como formação de mão de obra e garantia de interoperabilidade (que um sistema vá "conversar" com outro).

Também delegava a governos federal, estaduais e municipais vários aspectos de regulamentação, a serem conduzidos por órgãos setoriais.

De concreto mesmo, o texto estabelecia diretrizes de como as IAs deveriam ser desenvolvidas no país e como o poder público deveria se portar ao conduzir a regulamentação.

Com esse jeitão de "vamos ver no que vai dar para ver como é que fica", a matéria não foi adiante, ainda que aprovada pela Câmara.

O advogado Carlos Affonso Souza, diretor do ITS Rio (Instituto de Tecnologia e Sociedade) e colunista do UOL, é mais fino que eu ao descrever a situação.

O projeto aprovado na Câmara era muito principiológico e não trazia uma série de detalhamentos importantes para o estímulo e fomento à competitividade de IA no Brasil. Em vez de lutar para estar na 'pole position' com um texto que possa carecer de atualizações e, de maneira flagrante, se tornar caduco muito rápido, a solução mais adequada foi o Brasil captar o que há de mais importante na discussão internacional, aproveitar isso no seu texto e atender as necessidades típicas do contexto brasileiro.
Carlos Affonso Souza

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É verdade que o PL 21/20 já se inspirava na iniciativa do Parlamento Europeu, na época apenas em tramitação. O primeiro rascunho de legislação europeia é de 2021. Só que, de lá para cá, os europeus negociaram arduamente, e a lei saiu.

A Lei de IA da União Europeia opera com dois balizadores, o risco das aplicações e a transparência por parte dos desenvolvedores.

São três categorias de risco:

  1. Aplicações de risco inaceitável: são proibidas; exemplos delas são o sistema de pontuação social implantado pelo governo, como o da China.
  2. Serviços de alto risco: estão sujeitos a requisitos legais específicos; é o caso, por exemplo, de ferramentas que classificam currículos de candidatos a vagas de empregos.
  3. Sem regulamentação: aplicações não explicitamente proibidas ou listadas como de alto risco.

A camada de transparência é aplicada justamente para medir esse nível de risco. Antes de lançar no mercado um serviço, os desenvolvedores devem submetê-los aos reguladores europeus.

Eles devem informar documentação técnica, cumprir a legislação da UE para direitos autorais e divulgar o conteúdo utilizado nos treinamentos dos modelos.

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No caso de modelos básicos de alto impacto, como o ChatGPT, precisam reportar ainda incidentes graves, realizar testes de novas versões e garantir segurança cibernética e eficiência energética.

Com a Lei de IA, a Europa enfatiza a importância da confiança, da transparência e da responsabilidade ao lidar com novas tecnologias e, ao mesmo tempo, garante que essa tecnologia em rápida mudança possa florescer e impulsionar a inovação europeia.
Mathieu Michel, ministro belga da digitalização

Ainda que passe a valer em um mês, as obrigações têm prazo maior para serem adotadas, de 12 meses (modelos de IA de uso geral, tipo o ChatGPT), a 36 meses (IA incorporadas em produtos).

E o Brasil, hein?

Por aqui, o jogo está correndo mesmo é no Senado. Há pouco menos de um mês, o senador Eduardo Gomes (PL-TO), relator da matéria, apresentou um texto substitutivo ao projeto elaborado pelo presidente da casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). O texto dele também considera o PL 21/20.

Gomes disse à coluna que a maior fricção foram os direitos autorais dos conteúdos usados para treinar a IA.

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Não só é um ponto de atenção para empresas do mercado editorial, audiovisual, fonográfico e artistas, como virou um tópico acompanhado de perto pelo governo.

Durante a entrega do substitutivo, o ministro Alexandre Padilha, das Relações Institucionais, não só foi à Comissão Temporária Interna Sobre Inteligência Artificial, como fez discurso defendendo a regulamentação.

O grande desafio é medir a personalidade por conta dos mercados locais e das características de cada país e ao mesmo tempo deixar espaço para inovação que mantenha a competição em relação ao resto do mundo.
Eduardo Gomes, senador (PL-TO)

Para Gomes, a aprovação deve ocorrer ainda no primeiro semestre.

Ainda em junho a gente fecha o calendário e aí fica aguardando. A nossa parte tem andado bem no Senado, embora não possa prever a agenda da Câmara.
Eduardo Gomes

A celeridade tem seu preço. As consultas públicas foram feitas em forma de propostas enviadas ao gabinete dos senadores.

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Não se sabe o que foi proposto, quais temas foram mais questionados. O Brasil tem uma tradição importante no desenvolvimento de consultas públicas abertas e inclusivas. Não foi o que aconteceu com o projeto sobre IA.
Carlos Affonso Souza

A expectativa do governo federal é de aprovação ainda este ano. Mas isso não é tão simples. Do ponto de vista da vida política, o Congresso deverá ser esvaziado em duas oportunidades: festa junina e eleições municipais.

Carlos Affonso de Souza adiciona ainda uma questão regimental:

A expectativa de ter uma lei aprovada ainda esse ano depende de vários fatores, inclusive se o substitutivo do PL 2338 será adotado como um novo projeto, fazendo do Senado a casa original da discussão, ou se ele rejeita o PL 21/20, já aprovado na Câmara, fazendo assim com que a Câmara tenha a palavra final depois da votação no Senado.

Já vimos bastante coisa na vida pública brasileira. Não seria espanto nenhum que, mesmo em condições tão adversas, o Brasil ganhe uma regra para IA ainda em 2024. Se o processo foi célere, transparente e mesmo eficiente, é melhor deixar para o ChatGPT responder.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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