Diogo Cortiz

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Opinião

Startup do luto: como mortos estão 'ressuscitando' para papear com parentes

É época de Natal, e eu não queria falar de assunto meio sombrio, mas o jornal "The New York Times" publicou uma matéria sobre inteligências artificiais para conversar com os mortos. Então, achei importante trazer o tema para discussão.

Assim como existem as startups fintechs, especializadas em serviços financeiros, estão surgindo várias "grieftechs", empresas que desenvolvem tecnologia para o luto. A promessa é lançar produtos e serviços para ajudar pessoas a superarem a perda de alguém.

Várias delas começaram a explorar a IA para recriar as histórias e vozes de pessoas falecidas. Ainda em vida, o usuário pode contratar o serviço para preservar a sua memória e, posteriormente, compartilhá-la com seus entes queridos por meio de uma interface de chatbot que simula a sua existência.

É como se você tivesse a pessoa querida sempre à disposição no WhatsApp ou por meio de chamada por vídeo.

Para treinar o sistema, o usuário passa por uma conversa com um entrevistador automático que faz muitas perguntas sobre sua história de vida, preferências e vontades. A partir disso, o sistema tem uma base de conhecimento para responder como se fosse a pessoa.

Entre as startups desse novo setor está a HereAfter AI, que desenvolveu um aplicativo que vende para o usuário uma forma de preservar suas memórias e de estar sempre presente para as pessoas queridas. Outra startup é a StoryFile, que oferece um serviço de vídeos interativos.

O avanço da IA generativa faz esse tipo de solução ficar mais comum e acessível, o que levanta muitos pontos éticos. Diferentemente de outras, o desafio desse tipo de tecnologia é criar conteúdos e interações sintéticas que embaralham o pouco que conhecemos sobre o que é realidade.

Embora alguns serviços ofereçam apenas as respostas exatas dadas pelas pessoas antes de sua morte, funcionando como um buscador conversacional, outros começam a usar IA para criar um perfil do indivíduo que responde a perguntas inéditas a partir da generalização da base de treinamento.

É nesse caso que a coisa fica mais sensível. O sistema deixa de ser apenas um gerenciador de recordações e vira um criador de memórias que nunca, de fato, existiram. Muitas das respostas não são algo que a pessoa disse quando estava viva. São declarações que o modelo de IA criou com base no que acha mais provável que a pessoa pudesse ter dito.

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Esse tipo de solução é vendida como uma coisa mágica, mas esquece algumas coisas básicas da vida: a nossa subjetividade não cabe apenas na verbalização de desejos, vontades e valores, tanto é que o segredo é parte integrante da nossa existência.

Essas são algumas ponderações existenciais, mas tem um monte de desafios práticos para as 'grieftechs' em diferentes dimensões: éticas, psicológicas, afetivas, sociais e econômicas. E tudo isso já está gerando um grande debate no senso comum. Enquanto algumas pessoas dizem achar a ideia interessante, outras simplesmente a abominam.

Do ponto de vista científico, ainda precisamos de mais tempo e pesquisa para entender os efeitos cognitivos, psicológicos e efeitos nas pessoas. Hoje, boa parte de pesquisadores na área de ciência cognitiva e psicologia dizem que esse tipo de aplicativo pode confundir a nossa compreensão sobre a morte com a promessa de criação de um ser "imortal". Mas, a maioria entende que, mesmo assim, esse tipo de tecnologia pode ser estudado com mais empenho para que sejam identificados os momentos em que deve ser utilizado com efetividade em uma intervenção, por exemplo.

Tudo que é novidade chama atenção, mas nem tudo que parece interessante faz bem. Assim como o tema de AI Girflriends é um assunto curioso do qual ainda entendemos muito pouco, vamos precisar de muita pesquisa sobre "grieftech" para entender se há benefícios, quais são os malefícios e todos os riscos éticos envolvidos.

O ponto é que a IA está redefinindo limites que antes eram inquestionáveis e está bagunçando as nossas concepções sobre inteligência, criatividade e até a morte. E o negócio só vai ficar ainda mais confuso com o avanço da tecnologia. Só espero que no próximo natal não tenha um tio falecido em IA fazendo vídeo chamada para perguntar se é 'pavê ou pra cumê' quando alguém for servir a sobremesa na ceia.

E vocês? O que acham desse tipo de tecnologia? Comentem ai.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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