Livros no Centro: Livraria sofreu emboscada que levou à morte de Marighella

Chamada às pressas para integrar a equipe da livraria e editora Duas Cidades em 1971, Maria Antonia Pavan de Santa Cruz chegou para ocupar a vaga de uma vendedora que era, na verdade, uma agente infiltrada do regime militar.

A entrada de Maria Antonia na livraria se deu na fase de maior repressão da ditadura, e dois anos depois de um acontecimento trágico, que ela relembra no segundo episódio do podcast "Livros no Centro", uma produção da Livraria Megafauna com distribuição do UOL (você pode ouvir o programa completo no arquivo acima).

Em 1969, dois freis dominicanos funcionários da editora foram vítimas de uma emboscada por terem contato com o escritor e guerrilheiro Carlos Marighella, inimigo número um dos militares (ouça em 08:26). Foi por causa de um telefone grampeado na Duas Cidades que Marighella, à época foragido, foi encontrado e assassinado.

A livraria e editora Duas Cidades foi fundada em 1954, no centro de São Paulo, por José Petronilo de Santa Cruz, o Bené. Na época, ele era conhecido como Frei Benevenuto de Santa Cruz e integrava a Ordem Dominicana, que era sócia no negócio. Idealizada como um lugar de difusão especialmente de obras de formação religiosa, filosofia e teologia, a Duas Cidades com o passar dos anos se tornou ponto de encontro de universitários, artistas e intelectuais.

Por 35 anos, entre 1971 a 2006, a história de Maria Antonia se entrelaçou à história da Duas Cidades. Nascida em Ibitinga, interior de São Paulo, ela chegou à capital para estudar Letras na USP (Universidade de São Paulo). Em busca de emprego, pouco tempo depois foi parar na livraria. Naquele momento, quase toda a equipe foi trocada como consequência do episódio envolvendo o Marighella, e a Duas Cidades ficou marcada pela ação que culminou no assassinato.

As pessoas iam à livraria e tinham medo de conversar, fazer algum contato, porque de repente era um espião, relembrou Maria Antonia (ouça acima a partir de 15:31).

A virada da década de 1960 para a de 1970 foi crucial para a Duas Cidades não só por conta do momento político do país, mas também porque a editora tomou rumos que mudaram a história da livraria. Depois que o Frei Santa Cruz decidiu deixar a Ordem Dominicana, os livros de teologia que antes eram destaque no catálogo começaram a disputar espaço com publicações de ciências humanas e de artes.

A editora e livraria criava novas pontes com a universidade e com artistas e intelectuais da capital paulista. Maria Antonia relembra que o primeiro livro a marcar a nova fase foi "Os Parceiros do Rio Bonito", do professor e crítico literário Antonio Candido, amigo próximo de Santa Cruz (ouça em 19:28).

Também foram editados livros de autores como Mário de Andrade, Murilo Mendes, Orides Fontela e filósofos como Martin Heidegger, além de pesquisadores como o próprio Candido, Roberto Schwarz, Walnice Nogueira Galvão e Davi Arrigucci Jr. A livraria entrou na rota de intelectuais e artistas, como Marilena Chauí, Celso Lafer, Zé Mauro de Vasconcelos, Sérgio Buarque e Chico Buarque, José Wilker, Juca de Oliveira e Belchior.

Continua após a publicidade

Os lançamentos de livros eram um momento de encontro entre todos esses grupos. "Aquela livraria era enorme, abarrotada de gente. Naquela época, as pessoas iam mesmo. A gente chamava toda a nata, os curiosos também, para saber quem era, o que estava acontecendo", conta a livreira (ouça em 25:32).

Essas e outras histórias da livraria Duas Cidades estão no segundo episódio do "Livros no Centro". O podcast tem apresentação de Rita Palmeira, curadora da livraria Megafauna, e Flávia Santos, livreira e coordenadora da loja. O livreiro Maurício Gonzaga também participa deste episódio. Você pode ouvir o podcast quinzenal -publicado sempre às quartas-feiras- em Splash, no Youtube, no Spotify ou em sua plataforma de áudio favorita.

Livros citados no episódio 2:

"Batismo de Sangue", Frei Betto (Rocco)
"Os Parceiros do Rio Bonito", Antonio Candido (Todavia)
"O Discurso e a Cidade", Antonio Candido (Todavia)
"Vários Escritos", Antonio Candido (Todavia)
"Helianto", Orides Fontela (em "Poesia completa", Hedra)
"Ao Vencedor as Batatas", Roberto Schwarz (editora 34)
"O Tupi e o Alaúde", Gilda de Mello e Souza (editora 34)
"Meninos Sem Pátria", Luiz Puntel (Ática)
"O Que é Isso Companheiro?", Fernando Gabeira (Estação Brasil)
"Retrato Calado", Luiz Roberto Salinas Fortes (Editora Unesp)
"K., Relato de Uma Busca", Bernardo Kucinski (Companhia das Letras)
"Incidente em Antares", Erico Verissimo (Companhia das Letras)
"Sombras de Reis Barbudos", José J. Veiga (Companhia das Letras)
"Tirania das Moscas", Elaine Vilar Madruga (Instante)
"Em Câmara Lenta", Renato Tapajós (Carambaia)
"Poema Sujo", Ferreira Gullar (Companhia das Letras)
"Punho Cerrado: A História do Rei", Philipe Van R. Lima (Letramento)
"O Corpo Encantado das Ruas", Luiz Antonio Simas (Civilização Brasileira)
"Poesia Reunida", Sylvia Plath (Companhia das Letras)
"Talvez Você Deva Conversar com Alguém", Lori Gottlieb (Vestígio)
"A Sociedade da Neve", Pablo Vierci (Companhia das Letras)

Deixe seu comentário

Só para assinantes