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'Secos e Molhados', 50 anos: Ney revela bastidores de briga com integrantes

De Splash, em São Paulo

24/07/2023 04h00

O álbum "Secos e Molhados" (1973) completa 50 anos. O LP, que apresentou clássicos como "Sangue Latino", "O Vira" e "Rosa de Hiroshima", é o principal registro fonográfico da revolução estética e sonora que a banda representou à música popular brasileira entre os anos de 1972 e 1974.

A originalidade do disco começava pela capa. Na imagem, João Ricardo, Ney Matogrosso, Gerson Conrad e Marcelo Frias têm as cabeças entregues de bandeja em uma mesa cheia de produtos de mercado. Assinada pelo fotógrafo Antônio Carlos Rodrigues, a imagem transpassou o tempo e segue influenciando outros artistas.

Em entrevista exclusiva a Splash, Ney Matogrosso falou sobre a chegada ao grupo, a importância do trabalho, os conflitos entre os integrantes da banda e como enfrentou "sem medo" as pressões durante o período da ditadura militar no Brasil.

Teve todo o processo de adaptação com aquelas pessoas [outros membros da banda]. E eu, bem mais velho que eles, e eles desejando que eu viesse de boina de Che Guevara. Eu disse assim: 'Eu não vou botar boina de Che Guevara. Não tem por que eu entrar de boina. Vou fazer o que eu quiser.

Os parceiros de banda, porém, acabaram aceitando a recusa.

Conflitos

Secos e Molhados - Reprodução - Reprodução
Os Secos & Molhados: Gerson Conrad, Marcelo Frias, Ney Matogrosso e João Ricardo
Imagem: Reprodução

O cantor lembra que sofreu pressão dos colegas para mudar a forma de como se apresentava. "Teve um momento que eles me deram uma dura. Eu não podia fazer o que estava fazendo, porque estavam dizendo que era um conjunto de homossexuais. Aí eu virei para eles, e disse: 'Vocês podem falar que vocês não são'."

Eles até tentaram manter a "dura", mas era tarde demais. "Eu disse: Tá bom. Então bota outro no meu lugar', mas era tarde. A gente não tinha disco gravado, mas lotava todos os teatros em São Paulo. Não dava mais para mudar aquela cara."

A "androginia", os rostos pintados, as roupas e a forma com que as músicas eram cantadas se transformaram em marcas registradas do Secos e Molhados. "Era um forte atrativo dentro daquela história. Eu sempre tive noção disso. E não é pretensão minha, mas eu tinha noção que aquilo atraía mesmo as pessoas, porque era muito diferente de tudo que já tinha sido visto. Tinha uma ousadia que naquele momento não era possível."

Por que tanto espanto?

Ney Matogrosso - KENJI HONDA/ESTADÃO CONTEÚDO/AE - KENJI HONDA/ESTADÃO CONTEÚDO/AE
Ney Matogrosso se maquiando nos camarins antes do show do grupo Secos & Molhados, no Teatro Itália, região central da cidade de São Paulo, em 19 de setembro de 1973
Imagem: KENJI HONDA/ESTADÃO CONTEÚDO/AE

"Acho que nunca tinham ouvido aquele repertório. Nunca tinham visto um cantor daquela maneira, se apresentando daquela maneira, seminu, aquela voz. Quando as pessoas ouviam, não sabiam se aquilo era um homem ou uma mulher cantando. Tudo isso, para mim, foi parte do encantamento que o Secos e Molhados provocou", explica Ney.

O músico, que não estava nem um pouco preocupado com opiniões alheias, buscava liberdade. "Sinto que fiz tudo o que tinha que ser feito, e continuo fazendo tudo que tenho vontade. Sempre obedecendo uma coisa: a minha voz interior. Não estou preocupado em fazer nada para agradar ninguém, nem para ser politicamente correto. Nunca tive isso. Eu sempre quis ter liberdade para me expressar como eu quisesse, como eu era."

Ditadura, rompimento e tempo

Ney Matogrosso - Leo Aversa/Divulgação - Leo Aversa/Divulgação
Ney Matogrosso construiu carreira solo de sucesso
Imagem: Leo Aversa/Divulgação

A banda despertou a atenção dos militares, mas isso nunca impediu que o artista fosse ele mesmo — dentro e fora dos palcos. "Nunca senti medo de nada, embora eu vivesse vigiado. Tinha sempre um fusquinha parado na frente da minha casa. As pessoas se aproximavam de mim dizendo que receberam ordem para me levar, porque eu sofreria um atentado, mas eu não acreditava em nada. Nunca tive medo de nada, nunca mesmo."

A formação vitoriosa do Secos e Molhados chegou ao fim em 1974, após o lançamento do segundo LP e uma série de conflitos internos. À época, Ney e Conrad partiram para carreiras solo, enquanto João Ricardo tentou seguir com o grupo, mas sem alcançar o mesmo sucesso de outrora.

Cinco décadas depois, e prestes a completar 82 anos, o artista continua encarando a vida sem medo: "Não tenho medo de envelhecer. Eu observo que essa questão é uma coisa mais externa do que dentro. Eu me vejo o mesmo. Aquele lá de trás, com aqueles ideais. Eu me vejo o mesmo. Meu corpo está mudando, minha pele está mudando, mas eu continuo dentro de mim e me vejo igual".