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O julgamento do filme 'Os 7 de Chicago', da Netflix, foi armado? Entenda

Cena de "Os 7 de Chicago" - Divulgação
Cena de 'Os 7 de Chicago' Imagem: Divulgação

Leonardo Rodrigues

De Splash, em São Paulo

21/10/2020 04h00

Se você ainda não viu, pare de perder tempo e assista logo a "Os 7 de Chicago". O filme da Netflix, já uma das apostas para o Oscar, recria o famoso julgamento de um grupo de ativistas contra a guerra do Vietnã que foram presos e acusados pelo governo americano de conspiração e incitação à violência nos anos 1960.

Além da aulinha básica de história, o longa do diretor Aaron Sorkin nos mostra como, muitas vezes, sobretudo em uma sociedade em estado de ebulição, um julgamento pode ser bastante injusto e contaminado por fatores externos. Do racismo estrutural a inclinações políticas de seus personagens.

Dito isso, aí vem a pergunta clássica: será que tudo ali realmente aconteceu daquele jeito, com consequências tão impactantes e requintes cinematográficos? Bem, a resposta é uma só: "mais ou menos". Entenda abaixo.

O julgamento durou meses como no filme?

Sim. O confronto de manifestantes e policiais de Chicago, no lado de fora da Convenção Nacional Democrata, aconteceu no fim de agosto de 1968. E o julgamento teve grande repercussão pública e durou quase cinco meses, de setembro de 1969 a fevereiro de 1970. A sentença, posteriormente revertida em apelação, saiu no dia 20 de fevereiro.

Eddie Redmayne, que interpreta o ativista Tom Hayden (1939-2016) - Reprodução/Montagem - Reprodução/Montagem
Eddie Redmayne, que interpreta o ativista Tom Hayden (1939-2016)
Imagem: Reprodução/Montagem

Os manifestantes marcharam contra policiais que estavam em uma colina, o que provocou um violento conflito?

Não. No filme, policiais cercam a estátua do General John Logan no topo de uma pequena colina, à espera do grupo que tinha 10 mil ativistas. Mas na verdade aconteceu o contrário. Antes de serem violentamente reprimidos, eles chegaram lá primeiro. Alguns subiram na estátua e agitaram bandeiras.

Imagem do protesto real de Chicago - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Os manifestantes, incluindo Abbie Hoffman (Sacha Baron Cohen) e Jerry Rubin (Jeremy Strong), marcharam até a sede da polícia para tirar Tom Hayden (Eddie Redmayne) da prisão?

Sim. E eles foram recebidos por um batalhão de policiais armados em frente à delegacia. E Tom foi de fato libertado após pagamento de fiança.

Sacha Baron Cohen como Abbie Hoffman (1936-1989) - Montagem/Reprodução - Montagem/Reprodução
Sacha Baron Cohen como Abbie Hoffman (1936-1989)
Imagem: Montagem/Reprodução

Tom Hayden disse a frase "Se for para correr sangue que seja pela cidade toda" em um evento com manifestantes?

Sim. Nesse ponto, "Os Sete de Chicago" é bem fiel aos fatos. Aconteceu mesmo após o ativista Rennie Davis (Alex Sharp) ser agredido por policiais.

Os policiais realmente foram culpados pela violência do conflito, como o filme indica?

Sim. Segundo documentários, livros e reportagens sobre o episódio, policiais despreparados reagiram, de forma desproporcional e violenta, e sobrou até para jornalistas. Mas também é verdade —e isso filme não mostra— que militantes reagiram de forma forte, arremessando vidros, tijolos, pedras e vários outros tipos de objeto. Mais de 192 policiais ficaram feridos. E oito deles foram indiciados por violar direitos civis.

Os Sete de Chicago da vida real - Richard Avedon/Reprodução - Richard Avedon/Reprodução
Os Sete de Chicago da vida real
Imagem: Richard Avedon/Reprodução

O juiz Hoffman mandou amordaçar o réu Bobby Seale (líder dos Panteras Negras) no tribunal?

Sim. O advogado de Bobby precisou passar por uma cirurgia, e o juiz ordenou que ele fosse representado pelo advogado dos outros sete réus. Mas Seale não aceitava um representante branco. Sem ter direito de adiar o julgamento e a representar a si mesmo, Bobby chamou o juiz de "fanático", "racista", "fascista" e "porco".

Cena de 'Os 7 de Chicago' - Reprodução/Netflix - Reprodução/Netflix
Yahya Abdul-Mateen II como Bobby Seale
Imagem: Reprodução/Netflix

Um mês após o início do julgamento, Hoffman ordenou que os oficiais fizessem algo para impedir as interrupções. Eles decidiram amarrar Seale em uma cadeira e o amordaçaram. Para justificar a ação, o juiz se referiu a um precedente de um caso da Suprema Corte dos Estados Unidos. O episódio é narrado em detalhes no livro "Seize the Time", lançado por Bobby Seale em 1970.

Ilustração de Bobby Seale amordaçado no julgamento - Reprodução - Reprodução
Ilustração de Bobby Seale amordaçado no julgamento
Imagem: Reprodução

Mas Seale foi absolvido do julgamento?

Sim, mas não aconteceu tão rápido como no filme. Depois de permanecer dias —não só um— amordaçado no tribunal, ele foi desamarrado e voltou a interromper o juiz. Isso levou o Hoffman a declarar a anulação da parte dele no julgamento, considerando o réu culpado por 16 atos de desacato. A sentença previu quatro anos de prisão.

Bobby Seale discursa em Michigan, em 1971 - David Fenton/Getty Images - David Fenton/Getty Images
Bobby Seale discursa em Michigan, em 1971
Imagem: David Fenton/Getty Images

Posteriormente, o Tribunal de Apelações dos EUA considerou inconstitucional a ação do juiz ao negar ao líder dos Panteras Negras o direito de ter um advogado escolhido por ele e de impedir que representasse a si mesmo no julgamento. As acusações de desacato foram retiradas e Seale foi absolvido.

Os ativistas Abbie Hoffman (Sacha Baron Cohen) e Tom Hayden (Eddie Redmayne) tinham mesmo problemas de relacionamento?

Sim. Eles também viviam às turras na vida real. Hayden era mais contido e contra a violência. Abbie Hoffman tinha uma personalidade mais intempestiva e, em alguns momentos, agressiva.

Abbie Hoffman (Sacha Baron Cohen) e Tom Hayden (Eddie Redmayne) - Reprodução - Reprodução
Abbie Hoffman (Sacha Baron Cohen) e Tom Hayden (Eddie Redmayne)
Imagem: Reprodução

É verdade que Abbie Hoffman e Jerry Rubin usaram togas para provocar o juiz?

Sim. O juiz Julius Hoffman —não era parente de Abbie— ficou conhecido por defender a ordem e etiqueta. E os ativistas faziam de tudo para tirá-lo do sério. Eles realmente aparecerem no tribunal vestindo togas e, por baixo delas, usando uniforme policial. Também liam poesias e cantavam "Hare Krishna". Abbie se referia a Hoffman como "Julie" e dizia que a ideia de justiça "era a única obscenidade do local".

Frank Langella como o juiz Julius Hoffman - Reprodução/Montagem - Reprodução/Montagem
Frank Langella como o juiz Julius Hoffman (1895-1983)
Imagem: Reprodução/Montagem

É verdade que o juiz impediu que júri ouvisse o depoimento do advogado Ramsey Clark (Michael Keaton), ex-procurador-geral dos EUA?

É. Mas, diferentemente do longa, ele não informou ao presidente Lyndon Johnson que a Divisão Criminal do governo havia chegado à conclusão de que o conflito foi causado pelos policiais. Ele respondeu a perguntas sobre discussões com autoridades municipais e sobre o planejamento da Convenção do Partido Democrata.

Michael Keaton como o procurador-geral Ramsey Clark - Reprodução/Netflix - Reprodução/Netflix
Michael Keaton como o procurador-geral Ramsey Clark
Imagem: Reprodução/Netflix

Dave Dellinger socou mesmo um oficial, frustrado com a atitude do juiz?

Não. Ninguém foi esmurrado no tribunal. A cena foi incluída apenas para manipular nossas emoções. E faz isso muito bem.

John Carroll Lynch como David Dellinger (1915-2004) - Reprodução/Montagem - Reprodução/Montagem
John Carroll Lynch como David Dellinger (1915-2004)
Imagem: Reprodução/Montagem

AVISO DE SPOILER: ATENÇÃO, NÃO LEIA O TRECHO ABAIXO CASO NÃO QUEIRA SABER O QUE ACONTECE NO FIM DO FILME.

A cena de encerramento, em que Tom Hayden diz em voz alta o nome dos soldados americanos mortos no Vietnã, é real?

Sim. Mas não foi ele quem leu. Foi Dave Dellinger (John Carroll Lynch). E aconteceu no início do julgamento, 15 de outubro de 1969, dia em que manifestações em todo o país pediram uma moratória para encerrar a guerra no Vietnã. E a leitura foi realizada antes de o juiz entrar na corte, não depois.

Eddie Redmayne em cena de "Os 7 de Chicago" - Reprodução/Netflix - Reprodução/Netflix
Eddie Redmayne em cena de "Os 7 de Chicago"
Imagem: Reprodução/Netflix

Afinal, o julgamento foi 'comprado' para favorecer o governo?

É fato que havia um forte clamor popular contra os manifestantes. Na época, pesquisas apontavam que 80% dos americanos desaprovavam as táticas usadas por eles, a quem atribuíam a causa do conflito. O calor das notícias pode ter influenciado o veredito do juiz Julius Hoffman.

Apesar de ser baseado em transcrições reais do julgamento, o roteiro assume uma postura claramente pró-manifestantes. E por isso é impossível dizer com 100% de certeza que a Justiça manipulou o processo com intuito de condená-los, como o filme indica. Até hoje, essa é uma questão controversa.