Topo

Thiago Stivaletti

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Argentina, 1985': Brasil vive consequências de não condenar torturadores

Ricardo Darín, o procurador Strassera e Peter Lanzani, seu adjunto, Luis Moreno Ocampo em "Argentina 1985" - Divulgação
Ricardo Darín, o procurador Strassera e Peter Lanzani, seu adjunto, Luis Moreno Ocampo em "Argentina 1985" Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

27/10/2022 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Numa dessas coincidências da vida, "Argentina, 1985", o poderoso filme de Santiago Mitre que foi aclamado no último Festival de Veneza, foi lançado na Amazon Prime Video bem às vésperas do segundo turno das eleições no Brasil. (Melhor dizer arremessado, porque os algoritmos não parecem gostar muito de cinema brasileiro e latino e não costumam destacar esses filme em suas homes.)

Nosso "hermano" Ricardo Darín vive Julio Strassera, o promotor que foi encarregado de julgar os militares que comandaram a Argentina de 1976 a 1983. Comandaram é eufemismo - sequestraram, torturaram e mataram centenas de militantes (e outros supostos militantes) de esquerda. Você não leu errado: na Argentina, houve um julgamento (ainda por cima civil) da ditadura que terminou em várias condenações - a mais notória delas foi a prisão perpétua para um dos ex-presidentes do país, Jorge Rafael Videla. Tudo isso no primeiro mandato democrático pós-ditadura, a cargo de Raúl Alfonsín.

Em pleno 2022, o pessoal da extrema direita ainda brada a ameaça de que um dia o Brasil se torne uma Cuba, uma Venezuela, uma Nicarágua. Seria mais sensato nos compararmos à Argentina, um vizinho tão próximo, que teve uma ditadura muito diferente da nossa. Durou muito menos (sete anos e meio) e fez muito mais vítimas - um número vago que pode ir de 9 mil a 30 mil desaparecidos. Aqui, nossa ditadura durou o triplo do tempo - 21 anos, entre 1964 e 1985 - e deixou um saldo bem menor de vítimas - por volta de 475 mortos e desaparecidos, segundo a Comissão Nacional da Verdade.

Mas a verdadeira diferença de visões políticas entre nós e os vizinhos se sente hoje no presente. Nos anos 80, a Argentina teve esse grande julgamento bem documentado no filme de Mitre, com depoimentos das vítimas sendo exibidos na TV aberta para toda a população, leitura pública de sentença, julgamentos e condenações. Todo esse processo dolorido deixou a marca definitiva de que a ditadura argentina foi mesmo uma ditadura, nada perto de uma "revolução", usou e abusou de crimes, deixou vítimas concretas, destruiu famílias, distribuiu traumas pra todo lado.

No Brasil, a Lei da Anistia de 1979 concedia perdão (indulto) aos exilados políticos, mas também aos militares - que mataram e torturaram em maior escala, e o faziam em nome do Estado. O máximo a que conseguimos chegar foi a já citada Comissão da Verdade, criada em 2011 pela ex-presidente Dilma Rousseff, que foi presa e torturada pelos militares. A simples retomada dos arquivos da ditadura já deixou nossos militares de cabelo em pé, e algumas poucas condenações - como a do célebre Coronel Brilhante Ustra, exaltado por Bolsonaro. O que isso nos deixou? Uma certa impressão difusa na sociedade brasileira de que não houve crime, ou a certeza de que chefes de Estado, especialmente no regime militar, estão acima da Justiça. Não é difícil enxergar como essa "passação de pano" nos levou ao crescimento de Jair Bolsonaro, e como hoje até alguns professores de História podem encher a boca para dizer que no Brasil não houve ditadura. Como ensinou Freud, aquilo que é recalcado e não trabalhado pela nossa psique (individual ou coletiva) acaba retornando com força. É o que vemos agora.

Sobre o filme em si: "Argentina, 1985" é o candidato da Argentina a uma vaga no Oscar 2023. Tem um roteiro no melhor molde do cinema americano, com Strassera montando uma improvável equipe de advogados muito jovens, sem experiência nenhuma, que conseguem o impossível. Uma verdadeira luta de Davi contra Golias que a Academia de Hollywood ama premiar. Terá muitos concorrentes pela frente, mas me parece ter maiores chances que o nosso "Marte Um". Sem falar que o primeiro filme argentino a levar a estatueta - "A História Oficial", daquele mesmo ano de 1985 - trata do mesmo incômodo tema da ditadura.

Em resumo: é o filme perfeito para ver antes do nosso segundo turno das eleições no domingo e entender como chegamos até aqui. Boa eleição a todos.