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Carta ao Pai: Não espere ser preso como Nardoni para descobrir Franz Kafka

Alexandre Nardoni, condenado a mais de 30 anos de prisão por matar a própria filha, diminuiu um pouco sua pena graças à leitura de "Carta ao Pai", de Franz Kafka. Está na lei: cada livro lido e resenhado pode reduzir em quatro dias a punição do presidiário. O máximo permitido para esse fim são 12 livros por ano. Ou seja, a cada ano dá para abreviar em até 48 dias a passagem pelo xilindró por meio da leitura. É o que leio na coluna do colega Rogério Gentile.

Escrevi sobre como certas leituras podem mudar o rumo de nossas vidas quando ventilaram que "A Morte de Ivan Ilitch", de Liev Tolstói, talvez tenha dado uma força para que o casamento de Sandy e Lucas Lima chegasse ao fim. Não é a obrigação da literatura, não se trata disso, mas um efeito que bons livros eventualmente causam nos leitores.

Sei lá se "Carta ao Pai" impactou de verdade Nardoni, mas conheço gente que sacou um pouco melhor o mundo ao redor após ler a missiva que está entre os grandes livros póstumos de Kafka. Um antigo amigo, hoje um tanto afastado, sequer era um ávido leitor, mas foi compreender a tensão que tinha com o próprio pai graças ao modo como o tcheco expurgou a relação com o Hermann Kafka nesse acerto de contas nunca entregue ao seu destinatário.

"Querido pai, Tu me perguntaste recentemente por que afirmo ter medo de ti. Eu não soube, como de costume, o que te responder, em parte justamente pelo medo que tenho de ti, em parte porque existem tantos detalhes na justificativa desse medo, que eu não poderia reuni-los no ato de falar de modo mais ou menos coerente. E se procuro responder-te aqui por escrito, não deixará de ser de modo incompleto, porque também no ato de escrever o medo e suas consequências me atrapalham diante de ti e porque a grandeza do tema ultrapassa de longe minha memória e meu entendimento".

Pesco na biblioteca a tradução de "Carta ao Pai" feita por Marcelo Backes e publicada pela L&PM. É dessa forma que Kafka inicia o desabafo de mais de 100 páginas manuscritas em 1919, quando tinha 36 anos e já havia publicado livros como "Um Médico Rural" e "A Metamorfose". Neste, talvez seu trabalho mais lembrado pelos leitores, a hostil relação entre o personagem transformado num inseto e seu pai também reflete um tanto do espírito de Kafka.

As cobranças, imposições, hostilidades e intransigências de Hermann marcaram profundamente a vida de Franz e refletiram de diversas formas, às vezes menos explícitas, em sua literatura. Em "Kafka: Os Anos Decisivos" (Todavia, tradução de Sofia Mariutti), o biógrafo Reiner Stach aponta que o "conflito de Kafka com um pai superpoderoso moldou sua identidade judaica, a imagem de seu próprio corpo e a vida sexual". Hermann ditava até com quais mulheres o filho, já marmanjo, homem-feito, poderia se relacionar.

"Carta ao Pai" é um livro duro, que carrega marcas caras a uma carta pensada para ficar na intimidade, não lapidada para chegar a milhões de leitores pelo mundo. Não me parece a porta de entrada ideal para a literatura de Franz Kafka (pensaria em "Na Colonia Penal" ou mesmo em "A Metamorfose" para esse fim), mas é um texto que causa grande impacto, isso é inegável.

Não sei se Nardoni já tinha dado atenção para Kafka antes da cadeia, pouco importa. Só recomendo que as pessoas não passem a vida esperando não ter mais o que fazer para enfim descobrirem a maravilha que é a obra do tcheco.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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