Adania Shibli: livro mostra violências que há décadas amedrontam palestinos
"Detalhe Menor", da palestina Adania Shibli, é um livro feito de minúcias, como o título indica. O latir de cães inquietos que conectam diferentes momentos da história. As aranhas que, por mais que sejam esmagadas, retomam seu território e perturbam o algoz. O veneno que degrada o sujeito com o passar dos dias, de forma silenciosa. O cheiro de combustível que impregna no nariz.
Publicado originalmente em 2016, a versão de "Detalhe Menor" em inglês foi bem recebida pela crítica. Chegou à final do International Booker Prize e figurou na lista do National Book Award de melhores livros traduzidos.
Pela obra, Adania receberia um prêmio e participaria da Feira do Livro de Frankfurt deste ano, que rolou na semana passada. Por conta da origem da autora (uma palestina, vale lembrar) e dos massacres que acontecem no Oriente Médio, no entanto, a organização do evento achou de bom-tom desconvidar a escritora. Escrevi a respeito aqui.
Publicado no Brasil em 2021 pela Todavia, com tradução de Safa Jubran, em "Detalhe Menor" Adania resgata um episódio histórico para entregar ao leitor um breve romance sobre como palestinos vêm sendo trucidados há décadas. Em 1949, soldados israelenses com a missão de demarcar a fronteira com o Egito passavam um pente-fino no sudoeste de Neguev, "limpando-o dos remanescentes árabes".
Entre dunas "monótonas" e "taciturnas", isolados em meio à areia que tudo suga, sob o sol pesado ou o céu salpicado por estrelas (a descrição do cenário é outro detalhe da obra e ajuda a emular no texto a morosidade do deserto), os militares aniquilam os que veem como inimigos e aprisionam uma jovem árabe. Sem chance alguma de defesa, ela será humilhada, violentada e, enfim, assassinada pelos oficiais de Israel.
"Detalhe Menor" é dividido em duas partes. Na primeira, temos o relato desse crime que ocorreu enquanto mais de 700 mil palestinos eram expulsos de suas terras. Na segunda, décadas depois, uma mulher que vive em Ramallah, na Cisjordânia, é atraída pelo caso e decide tentar investigar mais a fundo os abusos sofridos e a morte da garota.
Essa pesquisadora vive em meio a explosões, a edifícios detonados, num "lugar dominado pelo estrondo da ocupação e pelas contínuas matanças". É ela que levará o leitor para uma breve viagem por territórios dominados pelos israelenses, áreas em que apenas determinadas pessoas são aceitas e onde são muitos os entraves a dificultar a circulação dos indesejados. A personagem sabe: ali, falar em árabe pode significar um risco para a sua vida.
Transmitir para o leitor o medo constante que chega a atabalhoar as ideias dessa mulher é um dos méritos de Adania. Ao longo da leitura podemos captar o temor de quem perambula por uma área hostil. Com um emaranhado de arbitrariedades e intimidações, a autora dá forma literária a uma violência contínua (intensificada em determinados momentos, como temos visto) que perdura por mais de meio século.
Entre os milhares de mortos nos últimos dias, aliás, pelo menos uma escritora foi vítima dos bombardeios de Israel contra a Faixa de Gaza: a também palestina Heba Abu Nada.
"Há quem veja nos detalhes menores, como a poeira na mesa do escritório ou o cocô na tela do quadro, o único caminho para se chegar à verdade, quando não a única prova conclusiva da sua existência", reflete a personagem. E são as minúcias que nos permitem observar essa pesquisadora como um duplo daquela garota violentada e morta pelos militares israelenses, num outro aceno à continuidade do horror.
Nos arquivos das forças armadas de Israel e nos memoriais dos assentamentos que a personagem achará um dado ou outro sobre o passado. Ela sabe que dificilmente encontrará naqueles papéis algo diferente da versão consagrada para a atuação dos militares. Precisaria descobrir novas fontes, talvez alguma senhora de boa memória que tenha vivido aquele período e se lembre da morte da garota.
Quem registra. Quem zela pela memória. Quem conta as histórias, principalmente daqueles que são acossados. Eis outra camada do livro de Adania. Sabemos, esses não são detalhes menores.
Assine a newsletter da Página Cinco no Substack.
Você pode me acompanhar também pelas redes sociais: Twitter, Instagram, YouTube e Spotify.
Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.