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OPINIÃO

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A luta de uma mulher pelas fascinantes marcas da humanidade no sertão

Niéde Guidon ilustrada por Hana Luzia - Hana Luzia
Niéde Guidon ilustrada por Hana Luzia Imagem: Hana Luzia

Rodrigo Casarin

Colunista do UOL

17/05/2023 04h00

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Após ser repreendido por matar uma cobra em área de preservação ambiental, o sertanejo questiona: por que o governo se preocupa mais com o bicho que com meus filhos que morrem de fome? Eis um símbolo do jogo de tensões que acompanharam a vida de Niéde Guidon, pesquisadora que descobriu vestígios dos primeiros habitantes da América no interior do Piauí e batalhou pela criação do Parque Nacional da Serra da Capivara, hoje patrimônio da humanidade.

Se parte da população de São Raimundo Nonato e arredores, onde está o parque, não via (e ainda não vê) muito sentido em preservar animais enquanto vivem à míngua, por que deveriam ter cuidado com objetos estranhos e desenhos esquisitos em paredes? Quando foi morar na região, Niéde conheceu até gente que levava urnas funerárias com milhares de anos para usá-las como recipiente para manter água fresca.

Convencer os sertanejos que cacos de cerâmica, pedras, pinturas e ossos eram relíquias arqueológicas foi um dos muitos desafios da meio francesa meio brasileira ao longo de cinco décadas. Com foco nas atividades relacionadas ao Parque Nacional Serra da Capivara, a história da pesquisadora está contada no recém-lançado "Niéde Guidon - Uma Arqueóloga no Sertão", da jornalista Adriana Abujamra, perfil de leitura fácil que serve de boa introdução ao universo descoberto e desbravado por Niéde, hoje com 90 anos.

Publicado pela Rosa dos Tempos, o livro abre a Coleção Brasileiras, que, capitaneada pela jornalista Josélia Aguiar, pretende registrar e apresentar a trajetória de figuras femininas ligadas à arte, à política e às ciências. A previsão é que ainda tenhamos outros cinco perfis, pelo menos: de Bárbara Alencar escrito por Socorro Acioli, de Patrícia Galvão assinado por Maria Valéria Rezende, de Nara Leão por Heloisa Starling, de Lélia Gonzales por Semayat Oliveira e de Conceição Evaristo por Yasmin Santos.

Atritos, trocas de farpas e brigas mais sérias com moradores daquele canto do país encravado no Piauí marcaram a atuação de Niéde. O trabalho de Adriana vai bem ao mostrar como a presença da pesquisadora alterou profundamente a vida e desagradou gente nas redondezas, especialmente quando desapropriações aconteceram para a criação do parque. Foram muitos os momentos em que a pesquisadora precisou falar alto e mostrar braveza para que não sucumbisse.

Niéde Guidon - Uma Arqueóloga no Sertão - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

A camada política é latente numa história iniciada durante a ditadura militar e ainda em curso. Entre pressões, mobilizações, avanços tímidos, retrocessos rápidos e muitas negociações, o jogo entre esferas locais e nacional passou a fazer parte da vida de Niéde. Bem como a necessidade de lidar com entraves tão estúpidos quanto uma regra que proibia mulheres de dirigirem carros oficiais.

Em meio a brigas pela aprovação de leis, criação de reservas ecológicas, busca por recursos e articulação para que o dinheiro chegue mesmo onde deve ser aplicado, em momentos importantes a pesquisadora só pôde seguir adiante graças à grana estrangeira. Dependesse apenas da vontade dos próprios brasileiros, a empreitada da arqueóloga minguaria logo e provavelmente o Parque Nacional da Serra da Capivara jamais existiria.

O material encontrado nas escavações coordenadas por Niéde mexeram com a maneira como compreendemos as pegadas da humanidade no continente americano. Por causa dos vestígios, pesquisadores cogitam que a região já era habitada há mais de 10, 20 mil anos — há quem fale até em 100 mil, num aparente exagero. O trabalho de arqueologia ajudou a solidificar a ideia de que não foi apenas pelo estreito de Bering que nossos antepassados deram as caras no continente.

Dos destinos que mais tenho vontade de conhecer no Brasil, hoje o Parque Nacional da Serra da Capivara é uma valiosa área de estudos e de turismo. Fazer com que mais gente lhe dê atenção, maravilhe-se com essa espécie de portal para um passado milenar, é mais um desafio.

À sua maneira, a história contada em "Niéde Guidon - Uma Arqueóloga no Sertão" reflete o descaso do Brasil com parte do que há ou poderia haver de incrível no país. Por outro lado, mostra como tem gente que se dispõe a dedicar a vida para batalhar por algo fascinante.

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