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Marçal pornô? Moralismo barato perseguirá a arte enquanto render votos

Pintura de Lucio Massari retrata queima de livros. - Reprodução
Pintura de Lucio Massari retrata queima de livros. Imagem: Reprodução

Rodrigo Casarin

Colunista do UOL

03/05/2023 04h00

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A história se repete: após auê de um político, pessoas compram o discurso temperado com moralismo barato e encorpam a gritaria. Então, no lugar de defender as suas escolhas, uma instituição baixa a cabeça, murmura qualquer desculpa tosca e cede à patrulha.

Agora quem está no centro da estupidez é "Eu Receberia as Piores Notícias de Seus Lindos Lábios", de Marçal Aquino (Companhia das Letras). Quem sucumbiu ao obscurantismo foi a Universidade de Rio Verde, de Goiás, que retirou a obra de sua lista de livros indicados para o vestibular após um deputado federal performar indignação e "acusar" o romance de ser pornográfico. Como de praxe, o chilique encontrou eco nas redes.

"Eu Receberia as Piores Notícias de Seus Lindos Lábios" se passa numa cidade paraense que é palco de uma série de problemas decorrentes do garimpo ilegal. É uma narrativa marcada pela forma como a violência se acentua com o decorrer dos eventos, numa representação em que a presença de termos ordinários não deveria causar surpresa em ninguém. Não é por acaso que o livro foi levado para o cinema, já saiu em quase dez países e está na 23ª edição.

Nesses acossamentos mudam os atores, mas o roteiro interpretado segue o mesmo. Convivemos com isso há mais de meia década. Momento-chave nesse processo talvez tenha sido o escândalo feito em 2017 por conta de "Queermuseu - Cartografias da Diferença na Arte Brasileira", que reunia obras de nomes como Lygia Clark, Alfredo Volpi e Cândido Portinari.

Na ocasião, um grupo estridente acusou a exposição de fazer apologia à zoofilia e à pedofilia, além de vilipendiar ícones religiosos. Parte da população encampou a visão tosca sobre a arte e o Santander Cultural antecipou o fim da mostra com um discurso tão tacanho quanto o daqueles que vociferavam contra a "Queermuseu".

Não coloco aqui o nome do deputado que se revoltou com o livro de Marçal, tido como um dos mais importantes de nossa literatura neste século, porque já deveríamos ter aprendido. Agentes políticos passaram a atacar obras de arte com o objetivo de provocar barulho e angariar novos seguidores.

Quem adota essa estratégia mesquinha e quem se vê representado com esse papo raramente estão preocupados e debater questões educacionais ou artísticas. O que há são sentimentos de identificação e de cumplicidade costurados por um moralismo que só existe, quando muito, da boca (ou da porta de casa) pra fora. O que está por trás disso tudo? A disputa pelo poder político e a busca por votos, claro.

"O que me choca é a comissão do vestibular e a universidade aceitarem essa tutela tão inapropriada e retirar o livro da lista do vestibular", disse Marçal ao colega Chico Alves.

Outro dia um leitor perguntou quando sairemos dessa. Penso que a questão não é quando, mas como superar o obscurantismo. Fazer com que brasileiros tenham boas ferramentas para compreender a arte é um passo tão fundamental quanto moroso, ainda mais num cenário em que até universidades se acovardam.

Enquanto a melhora na formação não ocorrer, a perseguição obtusa a livros, peças, filmes, mostras ou seja lá o que for continuará sendo um caminho para arregimentar eleitores. E a tendência é que, engrossado pela incompreensão, esse lodo siga a se alastrar.

Nos Estados Unidos, onde a coisa parece mais avançada, há pouco uma diretora precisou pedir demissão de uma escola porque, vejam só, uma foto de Davi, colossal escultura de Michelangelo talhada no início do século 16, também foi considerada pornográfica.

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