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OPINIÃO

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Mensagens no colofão: um capricho ignorado por muitos leitores

"O Rato de Biblioteca" - Carl Spitzweg
"O Rato de Biblioteca" Imagem: Carl Spitzweg

Rodrigo Casarin

Colunista do UOL

27/02/2023 04h00

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"Este livro foi composto em tipologia Lora, no papel pólen bold enquanto Jimi Hendrix tocava 'Voodoo Chile Blues', para a Editora Moinhos. Era o último dia de setembro de 2020. O Brasil, há poucos dias, via seu presidente mentir na ONU".

O ritual se repete: quando ponho as mãos em algum livro da Moinhos, abro logo na última página. Ali que fica o colofão, canto onde as editoras colocam informações sobre o volume: edição, tiragem, fonte das letras, papel usado, época em que o calhamaço rodou na gráfica, quem fez a impressão... Gosto quando aproveitam o espaço para deixar marcas, transmitir mensagens.

Jimi Hendrix tocava e as mentiras de Bolsonaro ecoavam quando o ótimo "Kramp", de María José Ferrada, foi impresso. "Caderno de Entomologia", de Humberto Ballesteros, ganhou vida no Brasil enquanto "3 vacinas surgiam como salvadoras na luta contra a covid". Já "As Aventuras da China Iron", de Gabriela Cabezón Cámara, outro daqueles que insisto em recomendar, foi composto em Fairfield LT Std no papel Pólen Soft e nasceu embalado por "Dança da Solidão", de Paulinho da Viola. Naquele momento de nossas vidas, em maio de 2021, "não havia palavras para definir o que acontecia no Brasil...", registra a Moinhos.

Um livro sempre poder ir bem além de seu texto principal, sabemos. Pelos clássicos latino-americanos editados pela Pinard acompanhamos o aumento no número de mortos durante a pandemia. Quando saiu "O Aniversário de Juan Ángel", do uruguaio Mario Benedetti, eram 570 mil os brasileiros vitimados pelo vírus. Ao publicarem "Homens de Milho", do guatemalteco Miguel Ángel Asturias, esse número dantesco já estava em 666 mil.

Não são os únicos a largar a mesmice e caprichar nos colofões. Encontro versos ao final dos livros da Patuá. Tanto "Ao Pó", de Morgana Kretzmann, vencedor do Prêmio São Paulo de 2021, quanto "Acordar", de Fernanda Estácio, são encerrados com poemas que acompanham datas de impressão e fontes usadas - Garamond Premier Pro e Minion Pro, respectivamente.

Observo outros cuidados na pilha de livros para ler. "Ao cair, a árvore finalmente encontrou suas raízes", vejo no final de "Tudo Meio Horrível", de Nathalie Lourenço, publicado pela Caos & Letras. "Sempre achei que o verdadeiro horror está ao nosso lado, que os monstros mais assustadores são nossos vizinhos", uma citação de George A. Romero, encontro em "Morto Não Fala e Outros Segredos de Necrotério", de Marco de Castro, lançado pela DarkSide.

Tenho alguma lembrança da primeira vez em que reparei nesse tipo de coisa. Não recordo qual era o livro, mas sei que era da Boitempo, casa que brilha quando falamos de colofões potentes. Alcanço na estante dois de Leonardo Padura. A resistência cubana durante a invasão da Baía dos Porcos, em abril de 1961, é lembrada em "Como Poeira ao Vento". No memorável "O Homem que Amava os Cachorros", um contraste: a foto de Lenin com um bichano no colo - era "um homem que amava os gatos".

A mistura de história e política vira grito de protesto em "Eu Já Morri", coleção de contos do imprescindível Edyr Augusto. A arte de Cristiano Siqueira clama: "Justiça por Genivaldo". Lemos no texto: "Este livro, lançado em agosto de 2022, cerca de três meses depois da morte de Genivaldo de Jesus Santos, ocorrida em 25 de maio do mesmo ano, após violenta abordagem da Polícia Rodoviária Federal (PRF), em Umbaúba (SE), foi composto em Minion Pro, corpo 11/14,6, e impresso em papel Avena 80 g/m² pela gráfica Rettec para a Boitempo, com tiragem de 2 mil exemplares". Bem melhor do que meras informações técnicas e algo burocráticas.

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