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OPINIÃO

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A improvável ajuda de Haruki Murakami durante o martírio na corrida

London Marathon - Pintura de Gosha Gibek
London Marathon Imagem: Pintura de Gosha Gibek

Rodrigo Casarin

Colunista do UOL

20/02/2023 04h00

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Tirar a largada da Praça Charles Miller, bem em frente ao finado estádio do Pacaembu, e colocar num estacionamento de shopping. Trocar um circuito cheio de construções históricas por outro repleto de templos de diversas vertentes de certa fé. Soa como boa metáfora do que São Paulo tem virado.

Por outro lado, é bem-vinda a iniciativa de levar a corrida de rua para longe dos lugares mais óbvios da capital. Importante lembrar: a cidade não se resume a meia dúzia de bairros esmagados entre a 23 de Maio e a Marginal Pinheiros. O novo percurso, que parte de Itaquera e rabisca ruas da zona leste de São Paulo, foi a principal novidade da 16ª edição da Meia Maratona Internacional de São Paulo. Numa prova difícil, onde subidas pareciam ser sucedidas por outras subidas, me lembrei de Haruki Murakami.

Fui para Itaquera após um recorde pessoal na Meia Maratona Internacional do Rio de Janeiro, em agosto do ano passado. Abri o ano com o objetivo de fazer 21km abaixo de duas horas, algo inédito por aqui. Sabia que os morros da corrida do dia 5 de fevereiro não eram os mais propícios para tal. Ainda assim, cenário animador até o km 10. Já no 14 o horror se desenhava: pelos números, seguia em condições de fazer o sub-2. Relógio dizia uma coisa, o corpo dizia outra. E ainda haveria montanhas pela frente.

Dias antes da prova, lia "Do que Eu Falo Quando Eu Falo de Corrida", livro no qual o japonês sempre cogitado ao Nobel de Literatura conta um pouco de sua vida como maratonista e triatleta. Publicado pela Alfaguara em tradução de Cássio de Arantes Leite, é uma obra que, como outras que já li de Murakami, oscila momentos realmente bons, divertidos, com passagens tão arrastadas quanto eu lá pelo km 19.

Entendo Murakami quando ele comenta como as corridas de longa distância - hábito que considera o mais útil e significativo adquirido ao longo da vida - impacta o seu trabalho. Tal qual na arte, o que está em questão quando colocamos o tênis no pé e saímos pelas ruas é mais entregar o melhor de si do que vencer ou perder, seja lá o que vitórias e derrotas possam significar para um escritor.

Do que Eu Falo Quando eu Falo de Corrida, de Haruki Murakami - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

"Forçar a si mesmo ao máximo dentro de seus limites individuais: essa é a essência de correr, e uma metáfora aplicável à vida", escreve Murakami. "A maior parte do que sei sobre escrever ficção aprendi correndo todos os dias", registra numa outra oportunidade. Além de renderem ótimos momentos para pensarmos na vida, os treinos e as corridas ajudam a trabalharmos a paciência, a termos resiliência para longas jornadas.

Não que estivesse refletindo a respeito desses trechos do livro durante o martírio por Itaquera. Como disse, tinha começado bem. Mas depois de morros, túneis, morros e mais morros a situação era realmente complicada. O que estou fazendo aqui? Por que não desisto disso? São pensamentos recorrentes quando a coisa aperta. Para um ateu, também pesa a falta de algum sobrenatural para quem apelar. Nenhuma divindade daqueles tantos templos pelo caminho poderia me dar uma força.

O ritmo já estava bem lento, o corpo pedia por descanso e uma dor logo abaixo da batata da perna direita soava como desculpa perfeita para diminuir ainda mais a passada e me arrastar numa caminhada até a linha de chegada. Aí lembrei que eu e Murakami temos algo em comum além do gosto pela corrida, pela literatura e pela cerveja: uma vaidade. A razoável vaidade de, numa prova, fazer o trajeto todo correndo, nem que seja no trote mais sem vergonha do mundo. Caminhar, jamais. Não desapontaria o camarada que nunca me viu na vida. Corrida de tartaruga até cruzar a linha de chegada - logo após outro morro e onde serviam uma água bem mais quente do que o desejado.

Dias depois, lembrei outro ponto que me aproxima do japonês. Um ponto em comum entre todos os corredores, creio. "Depois de tudo terminado e algum tempo ter se passado, esqueço a dor e o sofrimento e já estou planejando como posso fazer um tempo um pouco melhor na corrida seguinte". Também está em "Do que Eu Falo Quando Eu Falo de Corrida". Fato. Já procuro pela próxima meia.

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