Topo

Página Cinco

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O homem que afanou mais de mil originais e outros grandes ladrões de livros

O monge assassino e outros grandes ladrões de livros - Arquivo
O monge assassino e outros grandes ladrões de livros Imagem: Arquivo

Rodrigo Casarin

Colunista do UOL

18/01/2023 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Nem só de exemplares comprados, encomendados ou presenteados que se ergueu o acervo da mítica Biblioteca de Alexandria. Fundada no século III Antes da Era Comum e destruída provavelmente por um incêndio poucas centenas de anos depois, a empreitada para reunir todos os livros do mundo na cidade do litoral do Egito permanece como símbolo da paixão pelo conhecimento.

Como a espanhola Irene Vallejo recorda no ótimo "O Infinito em um Junco", práticas pouco gentis faziam parte das ações para satisfazer a ambição dos reis da dinastia ptolomaica. Grupos de guerreiros perambulavam pelo mundo próximo saqueando obras que encontravam pelo caminho. Quando barcos aportavam em Alexandria, logo os volumes que traziam a bordo eram confiscados.

O roubo foi um método adotado pelos egípcios para que Alexandria tivesse o gigantismo almejado. Surripiar obras desejadas é uma prática que acompanha a história do livro. No século 14, na Inglaterra, Johannes Leycestre terminou na forca após afanar um pequeno volume de certa igreja. Elois Pichler tinha até um casaco com compartimentos internos próprios para abrigar os milhares de exemplares que tungou da Biblioteca Pública de São Petersburgo ali pelos anos 1870 - flagrado, foi mandado para o exílio na Sibéria.

John Gilkey, que atuava até outro dia passando a mão em exemplares raros de antiquários dos Estados Unidos, argumentava: "Quando se tem uma estante de livros, com quanto mais livros você a ocupa, com mais livros irá querer enchê-la. E quanto mais valiosos forem os livros, mais bonita ficará a estante". A declaração está em "O Homem que Amava Muito os Livros", no qual a jornalista Allison Hoover conta a história de bandidagem letrada de John.

No século 19, na Espanha, a coisa foi mais tensa. Don Vicente ficou famoso por ser um monge que abriu uma livraria cheia de livros antigos e valiosos em Barcelona após desfalcar bibliotecas de claustros e mosteiros por onde passava. Tinha uma lógica peculiar: na loja, comprava muito mais do que vendia. Passava à frente apenas exemplares ordinários. Tudo o que era raro terminava em sua coleção privada.

Num leilão, ao não conseguir dar o maior lance por uma preciosidade desejada há tempos, o tal monge não só roubou o livro daquele que vencera a disputa, mas tocou fogo na casa do homem, que morreu carbonizado. Vingativo, ainda matou a facadas outras nove pessoas que tinham participado da disputa. Ao ser questionado no júri dos motivos para não pegar o dinheiro de ninguém, apenas livros, Don Vicente se saiu com um "porque não sou ladrão".

Não é toda hora que encontramos com um Don Vicente por aí. Mas em qualquer boteco onde leitores e escritores se encontram às vezes surgem histórias de conhecidos que se lembram com orgulho de como na juventude - ser jovem soa como desculpa razoável para muita coisa - tinham habilidades para esconder calhamaços sob a blusa ou enfiá-los em sacolas e mochilas. Fingir pegar emprestado o livro de um amigo com a certeza de que jamais irá devolvê-lo é outra forma recorrente, e menos arriscada, de passar a mão em exemplares de bibliotecas pessoais.

Penso nesses larápios da literatura após ler a história do italiano Filippo Bernardini, que se coloca num lugar bem particular de pilhagem alfarrabista. Nos últimos anos, Filippo criou mais de 160 contas falsas para se passar por agentes e outros profissionais do meio editorial. Com talento para a pilantragem digital, o homem, hoje com 30 anos, conseguiu mais de mil manuscritos inéditos. Ao que parece, autores do porte de Ian McEwan e Margaret Atwood caíram na sua canalhice virtual.

Até onde sabemos, o italiano nunca pediu dinheiro para manter os textos em sigilo nem compartilhou os originais por aí. Talvez seja mesmo mais um para o time de gatunos que furtam pelo prazer de ter por perto uma raridade literária (que seguirá com essa condição somente até tais trabalhos ganharem a primeira edição) ou para satisfazer ambições intelectuais.

Você pode me acompanhar também pelas redes sociais: Twitter, Facebook, Instagram, YouTube e Spotify.