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OPINIÃO

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Novo livro de Elena Ferrante tem escolha editorial que confunde o leitor

Ilustração de As Margens e o Ditado, de Elena Ferrante - Andrea Ucini
Ilustração de As Margens e o Ditado, de Elena Ferrante Imagem: Andrea Ucini

Rodrigo Casarin

Colunista do UOL

16/01/2023 04h00

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A mão da edição brasileira pesa demais em pelo menos um momento de "As Margens e o Ditado", alterando uma informação do original de Elena Ferrante. Em certa altura do livro recém-lançado no Brasil pela Intrínseca com tradução de Marcello Lino, o leitor é levado a acreditar que Ferrante teve acesso a "Memórias do Subsolo", de Dostoiévski, graças ao trabalho de Boris Schnaiderman, grande tradutor do russo para o português. O crédito ao profissional morto em 2016 aparece como parte do texto escrito pela própria autora. Não é o caso. Na edição italiana de "I Margini e il Dettato", publicada pela Edizioni E/O, Ferrante atribui a Paolo Nori o mérito pela tradução que lhe permitiu tal leitura.

É comum que editoras, ao lidarem com citações, utilizem traduções já consagradas de grandes obras para o português. A informação sobre quem traduziu tal trecho, no entanto, costuma aparecer entre parênteses ou em notas, não incorporada ao texto principal, como se fizesse parte do original. Segundo a Intrínseca, a ideia foi evitar a nota de rodapé (a posição da editora está no final desta resenha). Não será surpresa, contudo, se leitores passarem por "As Margens e o Ditado" e saírem encucados: Schnaiderman também teria feito traduções de Dostoiévski para o italiano? Ferrante teria lido a tradução para o português de "Memórias do Subsolo"? Nada disso.

É uma escolha que abala o conjunto de memórias e pensamentos da autora. Na escola primária, os cadernos com linhas pretas e vermelhas soavam como uma jaula para Ferrante. Entre aquelas folhas, a criança que se tornaria autora da Tetralogia Napolitana buscava transformar qualquer história numa narrativa "limpa, ordenada, harmônica, bem-sucedida", algo bem diferente do que está por trás da decisão de publicar os seus livros. Ferrante entende que suas escolhas artísticas estão diretamente relacionadas ao que chama de clamor desarmônico de sua mente.

"O romance de amor começa a me satisfazer quando se transforma em romance de desamor. O romance policial começa a me prender quando sei que ninguém descobrirá quem é o assassino. O romance de formação me parece estar no caminho certo quando fica claro que ninguém vai se formar", enumera em um dos ensaios do volume. E enfatiza: "A bela escrita se torna bela quando perde harmonia e tem a força desesperada do feio".

"As Margens e o Ditado - Sobre os Prazeres de Ler e Escrever" reúne textos de três conferências redigidas por Ferrante para uma série de encontros pensados pela Universidade de Bolonha. Nesses artigos, um dos nomes mais admirados da literatura contemporânea repassa pontos importantes de sua trajetória como leitora e escritora, reflete sobre aspectos centrais da vida construída junto às letras e compartilha meandros da criação e decisões tomadas durante a escrita de livros como "Um Amor Incômodo", "Dias de Abandono" e "A Filha Perdida". Completa o volume um ensaio sobre "A Divina Comédia", de Dante Alighieri, que, apesar de ter suas virtudes, é a parte menos interessante e mais dissonante do livro.

A margem imposta pelo texto bem domesticado - e pouco ou nada literário - da redação escolar é uma das que Ferrante precisou romper ao longo da trajetória como escritora. Entre inseguranças e lutas permanentes, a italiana relata como foi importante para a sua caminhada compreender que sempre haverá uma distância entre o que se forma no pensamento e como isso é reproduzido no papel. "O presente - todo presente, até o do eu que escreve, uma letra após outra - não consegue reter com nitidez o pensamento-visão, que sempre vem antes, que é sempre o passado e que, por isso, tende a se ofuscar".

As Margens e o Ditado, novo livro de Elena Ferrante - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Aspecto interessante de se observar nos ensaios de Ferrante é a constatação de que não cabe à literatura, sob a certeza de sempre fracassar, buscar reproduzir de forma exata a realidade. O que compete ao escritor é criar em suas páginas um jogo de ilusões com o leitor. Num outro ponto, a italiana menciona descobertas "ingênuas", mas "fundamentais", feitas ao baixar a guarda e adotar um "imperativo estético menos severo" durante a criação.

Exemplo de experimento livre e decisão autoral rigorosa, sem o compromisso de completa fidelidade ao real, está no percurso feito por Ferrante até achar o ponto exato para levar a oralidade das ruas de Nápoles para seus livros. Após perceber que algo semelhante a uma transcrição do que ouvia pelas esquinas não funcionaria bem em texto, achou o tom: essa pegada napolitana viria como "uma perturbação da escrita que irrompe de repente com poucas palavras, em geral obscenas".

Ao longo de "As Margens e o Ditado" também temos acesso a autores e obras fundamentais para Ferrante. Estão ali "A Consciência de Zeno", de Italo Svevo, os diários de Virginia Woolf, "A Autobiografia de Alice B. Toklas", de Gertrude Stein... Nem só os clássicos, no entanto, servem de campo para que a autora vasculhe o que pode interessar para a própria criação.

"Escrever é, a cada vez, entrar em um cemitério infinito no qual cada tumba espera para ser profanada. Escrever é acomodar-se em tudo o que já foi escrito - a grande literatura e a literatura de consumo, se for útil, o romance-ensaio e o melodrama - e, dentro do limite da própria vertiginosa e abarrotada individualidade, tornar-se, por sua vez, escrita. Escrever é apoderar-se de tudo o que já foi escrito e aprender aos poucos a gastar aquela enorme fortuna".

Nesse sentido, após relatar o excesso de autores homens lidos na juventude e contar que já se sentiu acuada por ser uma mulher criadora dentro de uma tradição que historicamente pouco reconhece suas semelhantes, defende uma espécie de ação coletiva para a construção de um outro vasto cemitério com outras tumbas a serem violadas:

"Hoje acho que, se a literatura escrita por mulheres quiser ter sua própria escrita da verdade, o trabalho de todas é necessário. É preciso abrir mão, por um longo intervalo de tempo, da distinção entre quem só faz livros medianos e quem fabrica universos verbais imprescindíveis. Contra a língua ruim que, historicamente, não prevê acolher nossa verdade, devemos confundir, fundir nossos talentos, nenhuma linha deve se perder ao vento".

A posição da Intrínseca ao ser questionada, via e-mail, sobre a decisão a respeito do crédito da tradução de Dostoiévski: "Para evitar a inclusão de notas de rodapé, optamos por creditar a tradução usada por Marcello Lino no corpo do texto. Elena Ferrante não leu Dostoiévski na tradução de Boris Schnaiderman, mas a cita na sua edição em português, como acreditamos que fica implícito na frase entre travessões: 'Em Memórias do subsolo — que cito na tradução de Boris Schnaiderman —, Dostoiévski faz seu terrível protagonista dizer...'".

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