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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Eis a questão: grifar, escrever e riscar livros ou deixá-los imaculados?

São Jerônimo, de Caravaggio. - Caravaggio.
São Jerônimo, de Caravaggio. Imagem: Caravaggio.

Rodrigo Casarin

Colunista do UOL

13/06/2022 04h00

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De vez em quando pintam quase polêmicas com quase discussões que me fazem lembrar de assuntos caros ao universo da leitura ainda não abordados aqui na coluna. No Twitter, a partir de postagem já não lembro de quem, vi gente se engalfinhando por conta de uma prática corriqueira para um grupo de leitores e aterrorizadora para outros tantos que vivem com livros por perto. E aí, grifar, anotar, desenhar, conversar, dobrar, enfim, deixar marcas no livro que se tem em mãos ou manter os calhamaços com aparência de imaculados, virginais?

Curto e grosso: se o livro é seu, você faz absolutamente o que quiser com ele. Se o livro é do outro, o outro também faz o que quiser. Mas aí a coluna não renderia. Nuances são importantes. Questão de civilidade não deixar marcas em livros emprestados de amigos ou bibliotecas. Exemplares históricos - uma primeira edição de "Grande Sertão: Veredas", de repente - também merecem ser tratados com cerimônia, como peças de museus (que podem render um bom troco num momento de aperto).

Há ainda quem compre obras, leia e depois troque por outros títulos, prática saudável em época de livros cada vez mais caros - graças à pindaíba em que nos metemos, preparem-se, a tendência é que os preços sigam subindo. A não ser que a pessoa faça parte de um grupo que vê graça em trocar exemplares com as marcas de leitura de seus camaradas, aqui segurar a mão enquanto lê também é uma boa.

Pondero tudo isso para deixar bem claro o quanto defendo as anotações durante as leituras. Por mim, se possível, que aconteça nos livros mesmo. Caso não seja razoável, que o leitor tenha por perto um caderno, bloco de notas, folha de sulfite, almaço, braço do sofá, mesa de boteco, porta de banheiro, qualquer coisa em que possa pescar os trechos marcantes e deixar reflexões. É o que costumo fazer quando leio HQs, aliás. Pelo pilar visual da arte, prefiro não esboçar garranchos incompreensíveis em páginas memoráveis - se a obra não é lá essas coisas, daí sem dramas sair tascando o lápis.

De resto, lembrem-se que o livro é um objeto e o que importa mesmo é a literatura, o seu conteúdo. Grifem, façam colchetes, anotem. Extravasem a revolta com personagens odiáveis, prosas toscas ou poemas mequetrefes. Deixem nas folhas as divagações que vêm à mente durante as melhores leituras. Dobrem as melhores páginas e pintem os trechos que não merecem ser esquecidos. Ler conversando com o livro é muito diferente de ler apenas passando os olhos pelas palavras, frases e parágrafos.

Estabelecer essa troca, esse diálogo, ajuda tanto a compreender a leitura quanto a estabelecer a forma como determinados títulos se conectarão à história de cada um como leitor. É nesse momento que solidificamos as possíveis pontes que ligam nossas referências literárias e de vida à obra lida. A prática, aliada na missão de não deixarmos nossa atenção ir embora, é preciosa para que tornemos a leitura de fato única.

Num episódio do bom podcast 30:MIN, ouvi a professora Cecília Marcon contando que costuma presentear os amigos com exemplares de títulos bem conhecidos por ela. O que seria algo comum se torna inigualável porque, antes de entregar o livro, Cecília repassa a leitura e deixa as suas marcas, as suas impressões, as suas considerações nas páginas que depois serão lidas por alguém querido. Este, então, poderá estabelecer um diálogo não apenas com o autor da obra, mas também com aquela que lhe presenteou e já deixou caminhos possíveis para a conversa silenciosa.

Adoraria ganhar um presente desses. É um exemplo ótimo de como se apropriar de verdade de um livro, que, ao extrapolar a sua forma original, deixa de ser um mero objeto para se transformar num ser único, também detentor de uma história completamente diferente de todos os seus pares de mesma linhagem.

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