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Como é sobreviver a um ataque nuclear?

Pintura de Yoshimura Kichisuke inspirada nos ataques nucleares dos Estados Unidos contra o Japão. - Reprodução
Pintura de Yoshimura Kichisuke inspirada nos ataques nucleares dos Estados Unidos contra o Japão. Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

09/03/2022 04h00

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Na semana passada a apreensão foi grande após a Rússia atacar instalações da maior usina nuclear europeia, numa variação da tensão maior. Desde que a guerra contra a Ucrânia começou, é considerável o temor de que em algum momento os russos ou alguma outra potência que possa se envolver no conflito utilize uma bomba atômica.

Difícil precisar como seriam os detalhes e as consequências hoje, mas, olhando para o passado, é possível ter uma dimensão bem clara do horror causado por tal tipo de armamento. Nunca é demais lembrar, até 2022 apenas uma nação fez uso de bombas atômicas durante alguma guerra: os Estados Unidos, que dizimaram as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki em 1945.

Para compreender o tamanho da desgraça provocada pelo seu país que em 1946 o jornalista John Hersey viajou para Hiroshima. Passou cerca de um mês na cidade colhendo impressões e entrevistando pessoas que sobreviveram ao atentado. Voltou para casa com material para escrever aquela que se transformaria numa das reportagens mais celebradas da história do jornalismo e que se sustenta tranquilamente como ótima literatura. "Hiroshima" saiu primeiro na revista The New Yorker e depois virou livro publicado no Brasil pela Companhia das Letras, em tradução de Hildegard Feist.

Quando a bomba explodiu, Hiroshima tinha 245 mil habitantes. Destes, 100 mil morreram imediatamente ou pouco tempo após a detonação, outros 100 mil ficaram feridos. Hersey foca seu texto na história de seis sobreviventes, pessoas que se perguntavam por que permaneciam vivas enquanto familiares, amigos e colegas tinham sido aniquilados. É por meio desses personagens que o leitor consegue ter uma ideia do que acontece quando uma bomba atômica é despejada sobre seu canto do mundo.

Diferente do que seria de se imaginar, quem sobreviveu ao ataque não se lembrava de ter escutado algum barulho causado pela explosão. Apenas um enorme clarão marcava a recordação dessas pessoas que, após instantes de desnorteio, aos poucos começaram a se dar conta dos próprios ferimentos e da dimensão da hecatombe.

Casas e edifícios transformados em entulho, muita poeira e focos de fumaça marcavam o novo cenário da cidade, que logo recebeu uma chuva feita de gotas imensas, do tamanho de bolinhas de gude. "Na verdade eram gotas de uma mistura condensada que caíam da turbulenta torre de poeira, calor e fragmentos de fissão que já se erguera no céu, milhares de metros acima de Hiroshima", explica Hersey.

Hiroshima, de John Hersey. - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Quem andava pelas ruas encontrava corpos e moribundos decrépitos. Os relatos falam em japoneses desfigurados, com os olhos destruídos, pedaços soltos de pele penduradas no rosto e nas mãos, além de queimaduras, muitas queimaduras. "Pessoas feridas sustentavam pessoas mutiladas; famílias desfiguradas se mantinham juntas, seus integrantes apoiando-se uns nos outros". Impressionam as cenas que retratam como homens e mulheres agonizaram até a morte.

Números específicos levantados por Hersey ajudam a dimensionar a extensão daquele caos. Além dos hospitais destroçados pelo ataque, restaram poucos profissionais da saúde em condições de atender os feridos. Dos 150 médicos de Hiroshima, 65 morreram na hora, além de tantos outros ficarem feridos. Das 1780 enfermeiras, 1654 morreram ou estavam machucadas a ponto de não poderem desempenhar seu trabalho. Mesmo quem conseguia procurar por ajuda tinha dificuldade para encontrar abrigo, materiais básicos para a sobrevivência ou alguém que pudesse lhe estender a mão.

Com o passar de horas e dias, mortes decorrentes do ataque se acumularam, num efeito que se arrastaria por diversos anos. Ao mesmo tempo, os sobreviventes viam-se cercados por um mistério: o que, afinal, havia lhes atingido? Cogitavam ter sido atacados por um grande volume de bombas incendiárias, por magnésio em pó ou por gasolina lançada de aviões que, na sequência, teriam colocado fogo em toda cidade. Essas pessoas pouco ou nada entenderam quando apareceram as primeiras explicações sobre o funcionamento da bomba nuclear da qual foram alvo.

No posfácio da edição brasileira de "Hiroshima", sobre a qual escrevi também aqui, o jornalista Matinas Suzuki Jr. aponta: "Todo americano que tem se permitido fazer piadas sobre bombas atômicas, ou que as tenha visto apenas como um fenômeno sensacional que pode ser aceito como parte da civilização - como o avião e o motor a gasolina -, ou que tenha se deixado especular interiormente sobre o que nós deveríamos fazer com elas se fôssemos forçados a entrar em uma nova guerra, deve ler John Hersey".

Babacas capazes de fazer da guerra e de outras tragédias motivos de piada ou meios para alcançar objetivos deploráveis seguem existindo aos montes. Gente que entende a bomba atômica como parte ordinária da civilização e arma para ser levada em conta num conflito também. Não só americanos, como indica Matinas, mas todos que palpitam ou se preocupam com os desdobramentos da guerra em nosso tempo deveriam ler John Hersey.

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