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OPINIÃO

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Política, drogas e a 'máquina de fazer sexo': a biografia de José de Abreu

Colunista do UOL

15/12/2021 04h00Atualizada em 15/12/2021 11h59

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"A ditadura, ao proibir passeatas, comícios e prender mais de setecentos estudantes simplesmente por estarem se reunindo para eleger a diretoria de sua entidade, nos jogou na luta armada. O LSD me mostrou que havia uma revolução a ser feita dentro de mim, uma busca interior. Como não dava para fazer a revolução para fora, eu faria para dentro".

Nessa busca, com o acirramento da patrulha e das perseguições promovidas pelos militares após o golpe de 1964, José de Abreu deixou o país. Em Paris se decepcionou. Resolveu acender um baseado enquanto curtia um show do Pink Floyd, porém, com medo de ser pego pela polícia, logo apagou o cigarro. "Na real, foi um baque. Não tinha saído do Brasil, me exilado de meu país, para ficar sendo reprimido em Paris, a terra da Liberté, cacete! Como é que é? Terra da liberdade? Para política, não para drogas. Tóim. Tocou o sino lá dentro. A liberdade que eu queria ainda não tinha chegado, pelo menos não a Paris".

Essa mistura da repressão de um estado ditatorial como aquele Brasil pós-64 com a busca por uma liberdade para se experimentar e provar o que desse na telha está no centro de "Abreugrafia - Livro 1 - Antes da Fama", volume inaugural da autobiografia do ator José de Abreu (Ubook). O segundo tomo, "Abreugrafia - Livro 2 - Depois da Fama", também já está disponível para o público. São nos primeiros anos da história do artista que me concentro para esta resenha (a data de corte de um livro para o outro é o primeiro contrato assinado com a Globo, em outubro de 1980, quanto o autobiografado tinha 34 anos).

Com menos de um ano para as eleições de 2022, começam a pipocar livros de possíveis candidatos. José de Abreu já anunciou: concorrerá pelo PT a uma vaga de deputado federal. Ao ler a primeira parte do relato de sua vida, dificilmente alguém poderá acusá-lo de amenizar a própria história para deixá-la mais palatável a esses tempos sombrios e caretas. O ator não busca fazer uma hagiografia de si mesmo, um alívio para qualquer leitor atento.

"Por mais fiéis que sejamos à memória, no fundo, somos inevitavelmente mentirosos. Não porque queremos, mas porque hoje somos diferentes do que éramos quando os fatos que narramos aconteceram", registra de partida Abreu. Esse olhar sóbrio para as memórias, sempre pouco confiáveis, é outro acerto.

O primeiro volume de "Abreugrafia", a autobiografia de José de Abreu - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Por outro lado, a opção por seguir a história de forma linear e o excessivo apego a detalhes, pormenores dispensáveis de passagens secundárias, deixam a narrativa mais longa e ocasionalmente arrastada do que o necessário. A vida de hippie viajando pela Europa, por exemplo, poderia render um livro próprio; em que pese as passagens saborosas, deveria ser condensada em uma biografia.

A assinatura do ex-presidente Lula em um dos prefácios já antecipa o tom político do que o leitor encontra nas páginas. "Na época do golpe de 1964, eu era muito alienado - foi o próprio golpe que me alertou", escreve Abreu em certo momento de sua história cheia de episódios de engajamento e militância. Formas de lidar com a censura, a participação nos movimentos estudantis, ocupações, ocultações de amigos perseguidos e conflitos com os obtusos do Comando de Caça aos Comunistas ocupam parte importante desse primeiro volume. Passagens pela cadeia num tempo em que se reunir para discutir política já podia ser visto como crime também fazem parte do relato, bem como as primeiras experiências com o teatro e o cinema.

Extrapolando suas facetas mais conhecidas, Abreu recorda da juventude como seminarista (na instituição religiosa que sofreu um ataque sexual no meio de uma sessão do filme "Marcelino, Pão e Vinho") e do trabalho na polícia, corporação que deixou ao presenciar um provável traficante sendo torturado. "Foi foda. Davam choques em todo o corpo do cara, nu. O corpo pulava movido pelos choques elétricos. Poças de suor no chão. Ele gritava muito. Saí de lá para não mais voltar".

Não que permeie todo o livro, mas outro ponto que quando surge merece uma atenção quase que afoita de Abreu é a sua experiência (e alardeado vigor) sexual. "Eu, nos últimos meses de Porto Alegre e primeiros de São Paulo, virei uma máquina de fazer sexo. Soube que na Escola de Teatro da UFRGS, o ex-CAD, chegaram a fazer uma aposta entre as alunas para ver quem me comeria primeiro. Não sei quem ganhou, mas passei o rodo. Ou fui passado", recorda, mostrando uma forma algo juvenil de se vangloriar dos feitos da vida íntima. É uma opção questionável que se repete em outras frentes do trabalho.

Passando a régua, este primeiro tomo de "Abreugrafia" traz uma história digna de livro contada de forma razoável. Felizmente, ao menos nesse primeiro livro, o tom de político em pré-campanha que encontramos em outras obras de pessoas de olho em 2022 parece não ditar os caminhos das memórias de Abreu.

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