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OPINIÃO

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Olimpíadas de volta ou um lugar menos insalubre para viver

O Grito, de Edvard Munch - Reprodução
O Grito, de Edvard Munch Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

11/08/2021 10h00

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A história sempre se repete. Me planejo com meses de antecedência para que consiga assistir a todos os jogos da Copa do Mundo. Com as Olimpíadas me engano. Penso que não vou dar muita bola, talvez ver o vôlei ou um pouco de natação, isso se estiver passando algo de interessante ao sentar no sofá. Daí os jogos começam e, horas depois, já estou tentando dar um jeito para que a vida não fique totalmente de lado enquanto busco decifrar como o pessoal consegue fazer tudo aquilo com o skate ou quais os segredos do jogo de peteca com nome gringo.

Foi bom e foi bonito afastar um pouco a mente do caos brasileiro para curtir o que rolou em Tóquio. Foi bonito porque o esporte é terra onde brotam histórias magníficas, protagonizadas por personagens singulares e contadas com imagens primorosas. Foi bom porque permitiu um descanso mental para uma cabeça atordoada pela iminência do golpe (que talvez já tenha rolado), pelos milhares de mortos, pelo sistema milico-miliciano que tomou conta de nossa política. Nem "Medo e Delírio em Brasília", dos melhores podcasts do país, escutei por esses tempos; uma ou duas atualizações por dia sobre a bad trip em que a gente se meteu já bastava.

Entre trabalho e Olimpíadas, nas últimas semanas um livro tem me acompanhado. É com vagar que estou curtindo "Os Detetives Selvagens", de Roberto Bolaño (Companhia das Letras, tradução de Eduardo Brandão). Intercalo o tijolo com outras leituras. Na história, me aproximo de personagens que deixaram seus países da América Latina por conta da truculência das ditaduras e tentam encontrar um rumo para a vida em diversos cantos do mundo.

Um dos mais importantes do chileno, no romance há muito do desnorteio com a vida, com o rumo das coisas, com a perspectiva de futuro (ou com a falta de perspectiva de futuro, para ser mais exato) que nos atormentam hoje. Vejo o Brasil conectado ao rio metafórico que, em Bolaño, une o México à América Central. Trata-se de um "rio de árvores ou um rio de areia, ou um rio de árvores que às vezes se convertia num rio de areia. Um fluxo constante de gente sem trabalho, de pobres e mortos de fome, de droga e de dor".

Mesmo passando uns dias menos bitolados com as notícias, ficava por dentro de nossas podridões, não tem jeito. De indivíduo que ocupa a presidência insistindo que a eleição de Biden foi fraudada, passando por prisões arbitrárias que contrariam ordens da justiça até uma deputada estadual reclamando de um padre que oferece comida a moradores de rua, recordo de um outro momento do ótimo livro de Bolaño. "Na América Latina acontecem essas coisas, e é melhor não quebrar a cabeça procurando uma resposta lógica, quando às vezes não existe resposta lógica", diz um dos personagens. E diz isso sem ter visto o desfile de velhos tanques de guerra enchendo Brasília com uma fumaça retrógrada.

Alguém já falou por aí: é cansativo pra caramba esse negócio de participar de momentos históricos. Ainda mais de um momento tão triste e tosco quanto este. A implosão da nossa democracia e o estraçalhar social do país nos esgotam mentalmente e fomentam um clima derrotista, um pessimismo paralisante, o que deixa a situação perigosíssima, com ares de irreversibilidade.

Em "Memórias do Cárcere" (Record), testemunho de Graciliano Ramos sobre o período em que foi preso político, o autor de "Vidas Secas" fala daquela "ditadura mal disfarçada por um congresso de sabujos" à frente do país em meados da década de 1930. Logo no começo, comenta como a situação do Brasil lhe atarantava. "Não caluniemos o nosso pequenino fascismo tupinambá: se o fizermos, perderemos qualquer vestígio de autoridade e, quando formos verazes, ninguém nos dará crédito. De fato ele não nos impediu de escrever. Apenas nos suprimiu o desejo de entregar-nos a esse exercício".

É familiar. Outra Olimpíada cairia bem, mas um lugar menos insalubre para viver seria mesmo o ideal.

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