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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A felicidade e a força das miudezas segundo Franz Kafka

Kafka - Arquivo
Kafka Imagem: Arquivo

Colunista do UOL

12/07/2021 09h58

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É curiosa a ideia de felicidade que Franz Kafka tinha em determinado momento de sua vida.

"O medo é a infelicidade, o que não significa que a felicidade é a coragem, e sim o destemor; não é a coragem, que talvez demande mais do que força", registrou em seus diários no dia 18 de janeiro de 1922, quando tinha 38 anos. Como exemplo, o escritor lembra de dois colegas de escola, judeus corajosos que se mataram com um tiro.

Ali, Kafka considera que a felicidade é um destemor "sereno, de olhar franco, capaz de suportar tudo". Depois, adota um tom de conselheiro. "Não se obrigue a nada, mas não se sinta infeliz por não se obrigar ou pelo fato de que, para agir, teria de fazê-lo. E, não se obrigando, tampouco se ponha a rodear ávida e continuamente as possibilidades de coerção".

Kafka se encontrava mesmo nas palavras (dizer isso do autor de "O Processo", "A Metamorfose" e "O Castelo" beira a estupidez, eu sei). Em outro trecho de seus diários, compila o que depõe a favor ou contra seu casamento. Num dos itens, escreve: "Odeio tudo o que não tenha a ver com literatura, entedia-me conversar (mesmo que a conversa seja sobre literatura), entedia-me fazer visitas, os sofrimentos e as alegrias de meus parentes entediam-me até o fundo da alma".

"Diários" - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

São citações que retiro de "Diários", tijolaço que a Todavia publicou há pouco reunindo registros pessoais que Kafka fez entre 1909 e 1923, um ano antes de sua morte. Com tradução de Sergio Tellaroli, o volume se baseia nas edições mais completas dos escritos íntimos do autor e traz uma enormidade de notas que ajudam a contextualizar o mundo no qual o tcheco estava inserido e a explicar os conflitos de diferentes ordens que o afligiam.

Em constante ruído com a família, com uma vida à sombra do pai, periclitante nas relações afetivas e sexuais, insatisfeito no trabalho, naquele 18 de janeiro de 1922 Kafka pensava sobre os pesos que lhe esmagavam. Nesse dia em que escreveu sobre a felicidade, também refletiu sobre a importância de aprender a ter paz mesmo em momentos aparentemente terríveis.

"Ele não é terrível, é apenas o medo do futuro que assim o faz. Bem como, é claro, o olhar retrospectivo. O que fez você com a dádiva do sexo? Malogrou, é o que vão dizer por fim, e nada mais. Mas poderia facilmente ter dado certo. De resto, uma miudeza, nem ao menos reconhecível de tão pequena, decidiu. O que é que tem? Assim foi também nas maiores batalhas da história universal. Miudezas decidem miudezas".

São miudezas que constituem desde os nossos dramas até as batalhas mais grandiosas, nos lembra Kafka. Me parece um ponto importante para se pensar enquanto somos massacrados por tantas desgraças colossais, mas que também são arquitetadas (e sustentadas) por pequenos atos.

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