Topo

Página Cinco

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Comer larva, beber urina e não enlouquecer: 12 anos num calabouço

 Huldobro e Rosencof - Divulgação
Huldobro e Rosencof Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

24/03/2021 11h15

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

A comida era servida pelos soldados misturada com terra ou bitucas de cigarro. Quando os milicos não mandavam refeição, o jeito era enganar a fome com mosca, larva, papel... Sem água, decantavam a própria urina em algum frasco para depois bebê-la. Estavam sempre encapuzados nas raras vezes em que eram levados para fora do calabouço. Após o cocô, por exemplo, precisavam se virar para limpar as nádegas algemados e privados da visão. O capuz também servia como colchão improvisado.

Em 1973, Pepe Mujica, Mauricio Rosencof e Eleuterio Fernández Huidobro, companheiros de Tupamaros, foram sequestrados pelo exército uruguaio, então à frente da ditadura instaurada no país. Havia a ameaça: se a resistência fizesse algo pelas ruas de Montevidéu ou qualquer outra cidade, os reféns seriam executados.

Os prisioneiros só foram libertados 12 anos após o sequestro. Décadas mais tarde, Pepe Mujica virou presidente do país. Jornalistas e escritores, Rosencof e Fernández seguiram com suas carreiras e, num passado recente, também tiveram incursões pela política. Os dois que, no final dos anos 1980, sentaram-se diante de um gravador e começaram a conversar sobre o que passaram nas mãos dos militares.

Coube a Mujica editar o material que resultou em "Memórias do Calabouço", livro que chega ao Brasil pela Rua do Sabão (a tradução é de Ana Helena Oliveira e Paloma Santos, o prefácio, de Eduardo Galeano). O título deu origem ao pesado e incontornável "Uma Noite de 12 Anos", filme de 2018 dirigido por Álvaro Brechner.

"Percebe que nos acostumamos a apanhar? Chegou um momento em que as surras faziam parte da nossa rotina e não nos incomodávamos tanto? Contanto que pudéssemos fazer xixi, cocô e beber água, levar umas porradas era o de menos", diz Huidobro em certo momento do longo diálogo. Dá uma ideia da completa desumanização pela qual passaram.

Capa de Memórias do Calabouço - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Sem poder simplesmente assassinar os reféns, os capachos de superiores trabalharam forte para enlouquecê-los. Isolados em porões transformados em solitárias, impedidos de conversar uns com os outros e sem contato com o mundo externo, os Tupamaros chegaram a desenvolver um modo de se comunicar via batidas nas paredes com os nós dos dedos.

"Desapareciam os limites entre a realidade e a imaginação", recorda Rosencof. Já Huidobro indica uma das chaves para que mantivessem a resiliência, sobrevivessem aos doze anos de cativeiro militar e voltassem à cena pública. "Acho que descobrimos, Russo, uma das emoções que mais desestabiliza a personalidade: a pena de si mesmo. Não se pode ceder a ela porque, se acontece, a pessoa desmorona".

Documento histórico agarrado ao tempo de cativeiro, "Memórias do Calabouço" nos faz lembrar de outros livros que condensam o que seus autores passaram atrás de grades. Exemplos são "Memórias do Cárcere", de Graciliano Ramos (Record), "Cartas da Prisão", de Nelson Mandela (Todavia), e "A Gaiola", do mexicano José Revueltas (34), talvez o que mais se aproxime em termos de denúncia ao desprezo pela condição humana (sim, sei que, diferentes dos outros, este se apresenta como uma ficção).

Construir um livro sustentado por um longuíssimo diálogo é um desafio. A chance de algo assim resultar num volume enfadonho é grande. Mas Rosencof e Huidobro se saem bem. O papo mostra muito da busca pelo outro, da companhia, da amizade e da camaradagem. A escolha da conversa como formato tem seu simbolismo. O diálogo é o contrário do longo silenciamento pelo qual passaram e o avesso do monólogo autoritário que impera numa ditadura ou em qualquer quartel pelo mundo.

Ao longo da conversa entre Rosencof e Huidobro, notamos como os atos primitivos dos milicos revelam o processo de brutalização inerente à própria formação militar e à cultura da caserna. Truculência, subserviência e corrupção fazem parte do cotidiano daqueles homens de tantos atos caracterizados pela ignorância e pela maldade. Ao longo do papo, refletimos sobre a aparente ausência de espaço para a sensibilidade e para a empatia dentre os fardados, que, bitolados em sua própria lógica de mundo, passam a ser ver como uma casta superior aos civis - bizarramente, há civis que fomentam essa estupidez.

O último parágrafo de "Memórias do Calabouço" traz palavras que ainda precisam ser ecoadas com força não só no Uruguai, mas em outros cantos da América Latina (alô, Brasil!): "Move-nos, a todos, o sentimento desesperado de que as bestas permaneçam em suas tocas, para que no Uruguai de Todos (também deles, em seus respectivos lugares) seja hasteada a seguinte bandeira: NUNCA MAIS".

Foto de abertura do texto alterada às 13h33 do dia 24/03/21.

Você pode me acompanhar também pelas redes sociais: Twitter, Facebook, Instagram, YouTube e Spotify.