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Leonardo Rodrigues

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O dia em que Gal Costa desbundou e lançou o melhor disco de rock brasileiro

Gal Costa em 1971 - Reprodução
Gal Costa em 1971
Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

09/11/2022 13h46

Para quem nasceu nos anos 1980 como este colunista, e conheceu Gal Costa, que morreu hoje, por trilha de novela e sua versão de "Lanterna dos Afogados", o epíteto "uma das maiores vozes brasileiras" nunca fez cócegas.

Pudera: minha imagem construída era de uma cantora popular e afinadíssima, porém careta, domada pela indústria e que refletia uma música popular brasileira envelhecida e em franca decadência. E evidentemente eu não poderia estar mais equivocado.

Só percebi esse erro de avaliação há pouco mais de dez anos —antes tarde do que nunca—, quando ouvi, pela primeira vez e com a devida atenção, "Fa-Tal - Gal a Todo Vapor" (1971), primeiro álbum ao vivo não de uma uma das maiores vozes brasileiras. Mas da maior.

Gravado de forma charmosamente precária no teatro carioca Tereza Raquel, uma série de concertos dirigidos pelo poeta e compositor Waly Salomão, o LP coleciona verbetes. É o segundo disco duplo da história da MPB. Foi eleito pela revista Rolling Stone o 20º melhor disco nacional. Recentemente, foi redescoberto e reapresentou Gal à nova geração.

Mas nada disso se compara ao fato de ser o trabalho em que a artista se revelou na carne: uma intérprete anárquica, intensa e musicalmente eclética, fórmula que regeria uma nova e breve fase da carreira. A da Gal radical.

Acho que aquele psicodelismo que havia antes, nos anos 60, com Jimi Hendrix e Janis Joplin, aquilo que havia quando eu fiquei aqui no Brasil, enquanto Caetano e Gil estavam exilados, era um 'radicalismo', digamos assim. Gravei alguns discos em que eu usava o grito como expressão de canto. Não que eu ache que isso seja regra. A música pode ser assim ou não.
me disse Gal em entrevista em 2015

Em termos sonros, "Fa-Tal" é um salto tremendo em relação aos já excepcionais e intensamente tropicalistas "Gal Costa" (1968) e "Gal" (1969). E é fascinante perceber como Gal se expôs dúbia. De uma verve estridente e roqueira. De uma bossa suave de beleza estonteante. Um acinte em termos de presença de palco (o show foi registrado em filme por Leon Hirszman) e interpretação para uma jovem de apenas 26 anos.

Com "Fa-Tal - Gal a Todo Vapor" e seu repertório calcado no folclore baiano, Ismael Silva, Caetano, Jorge Ben, Luiz Melodia, Roberto e Erasmo, Gal recebeu da imprensa a alcunha de "musa do desbunde". A partir daí virou capa de revista e viu sua popularidade decolar em tempos nebulosos de censura e —apesar ou por causa disso— de uma contracultura pujante.

Em miúdos, se você nunca deu uma chance a este marco da discografia brasileira, produzido por Roberto Menescal, faça um favor a si mesmo.

O álbum é dividido em duas partes. Na primeira, acústica e reverente, Gal surge quase tímida com violão em punhos e gigante em sua pequeneza. A segunda é totalmente diferente: intensa, beirando o ríspido, em que brilha não só uma voz navalhante, mas uma banda fantástica ancorada em Lanny Gordin, lenda da guitarra conhecida como "Jimi Hendrix brasileiro".

Esse trecho, em sua robustez, peso e energia transgressora, talvez seja o melhor disco da história do rock made in Brazil, que até ali nunca havia eclodido tão tropicalista e brasileiro.

Não quer perder tempo? Eis um guia expresso de audição de "Fa-Tal - Gal a Todo Vapor" em três destaques:

"Como 2 e 2": Sozinha, Gal adiciona camadas doces e profundas à melodia inconfundível de Caetano Veloso, famosa com Roberto Carlos, e nos faz perguntar se seria possível alguém em qualquer tempo se aproximar deste nível de sentimento. Lindo.

"Dê um Rolê": A artista se apropria do verso "Eu sou amor da cabeça aos pés" —ela é—, da música de Moraes Moreira e Luiz Galvão, e obtém a proeza de melhorar uma canção dos Novos Baianos. Melodia crescente e um festival de riffs e distorção a cargo de Lanny Gordin.

"Vapor Barato": Começa com um lindo vocalize simulando um solo de guitarra wah-wah e termina com Gal indo a Marte em agudos rasgados que jamais quis repetir. É a versão definitiva da definitiva canção de Waly Salomão e Jards Macalé.

Citar apenas três faixas é raso e insuficiente diante da experiência intensa e sinestésica que é escutar "Fa-Tal", seja em mídia física ou streaming. Um disco obrigatório para quem nunca compreendeu Gal Costa e que me fez, sem medo, descer Elis Regina ao posto de segunda maior cantora brasileira. Mas sem dúvidas é um excelente começo.