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Flavia Guerra

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Do blockbuster ao cinema de arte, os desafios do cinema em 2022

Tom Cruise em cena de "Top Gun: Maverick", que aqueceu o circuito de cinema em 2022 - Divulgação
Tom Cruise em cena de "Top Gun: Maverick", que aqueceu o circuito de cinema em 2022 Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

24/12/2022 12h04

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Retrospectivas já nascem incompletas. Afinal, impossível dar conta de todos os destaques do cinema tanto mundial quanto nacional que, apesar de tudo, teve um ano memorável. Dito isso, esta primeira retrospectiva desta coluna segue o recorte de destaques que levaram o público de volta aos cinemas e fizeram com que o circuito mundial de salas voltasse a respirar um pouco mais aliviado. Em contraponto, em 2022, o cinema que foge ao formato blockbuster, comercial e/ou hollywoodiano também levou os cinéfilos mais atentos aos filmes autorais, independentes e/ou não comerciais às salas de circuitos menores, mas não menos importantes para a saúde do setor cinematográfico.

O cinema começou 2022 com um grande desafio: Como levar de volta às salas um público, não só brasileiro, mas mundial, que, depois de dois anos de pandemia, crise econômica e crescimento exponencial do streaming, se não ganhou, acentuou, o "novo" hábito de ver muito mais filmes em casa? O "home cinema" existe há tempos e não é de hoje que ver um filme no conforto de casa é uma grande pedida. Das locadoras à pirataria, passando pelo nascimento do streaming e até mesmo a TV, ver mais filmes em casa e escolher um "filme evento" para ir até um cinema é um hábito que veio para ficar. Mas nem por isso o cinema deve, e vai, morrer. Muito pelo contrário. Sem a sala de cinema não há o "home cinema". Um alimenta o outro. Parece óbvio, mas, diante do atual cenário multitelas do mundo, não é tão simples assim.

Blockbusters

E em um ano em que o primeiro grande blockbuster só surgiu em março, com a estreia de "Batman". que trouxe Robert Pattinson e Zoe Kravitz no papel do casal de arqui-inimigos (ela, como mulher gato), arrecadando US$ 770 milhões, e com o aguardado " Dr. Estranho no Multiverso da Loucura" no início de maio, que arrecadou US$ 950 milhões. No entanto, o grande blockbuster do ano, que fez de fato as multidões voltarem ao cinema só surgiu no meio de maio, no Festival de Cannes, na França, com direito a voos de caça e homenagem a Tom Cruise. "Top Gun: Maverick" é o filme. Depois de amargar a geladeira durante a pandemia, a sequência do clássico de ação estrelado pelo ator que dispensa dublês em cenas perigosíssimas foi o responsável por trazer o amor por uma simples ida ao cinema de volta em escala global.

"Top Gun" estreou no final de maio em todo o mundo e fez 1,48 bilhão de dólares de bilheteria global e abriu caminho para outros blockbusters como "Jussaric World: Domínio"(junho), que arrecadou US$ 1 bilhão, "Thor, Amor e Trovão" (em julho, que arrecadou US$ 760 milhões), "Halloween Ends" (setembro), "Pantera Negra - Wakanda para Sempre"(novembro), com US$ 800 milhões e ainda contando, pois ainda continua em cartaz, e "Avatar - O caminho da Água".

 Jake Sully (Sam Worthington), Ronal (Kate Winslet) e Tonowari (Cliff Curtis), o casal do povo  Metkayina, que recebe a família Sully  -  Divulgação / Cortesia da 20th Century Studios -  Divulgação / Cortesia da 20th Century Studios
Jake Sully (Sam Worthington), Ronal (Kate Winslet) e Tonowari (Cliff Curtis), o casal do povo Metkayina, que recebe a família Sully
Imagem: Divulgação / Cortesia da 20th Century Studios

"Avatar: O Caminho da Água" e a necessidade de quebrar recordes

"Avatar 2", a propósito, fecha o ano no Brasil com a marca de segunda maior estreia de 2022, alcançando 500 mil espectadores e mais de 7,5 milhões de arrecadação em sua primeira semana em cartaz. Também facilita o fato de o filme ter estreado em mais de 2,6 mil salas do País, cerca de 72% de todo o circuito. A movimentação em torno de "Avatar 2" fez com que a frequência aos cinemas crescesse 12% nas últimas semanas. No mundo, o segundo filme da saga criada por James Cameron havia arrecadado cerca de 900 milhões de dólares em seus primeiros dez dias em cartaz (dia 26 de dezembro, data de fechamento deste texto). Se permanecer em cartaz durante as férias de fim de ano, ainda que nos EUA tenha havido uma baixa nos cinemas por conta da forte onde de frio, "Avatar 2" se encaminha para bater "Top Gun: Maverick" e se tornar um fenômemo maior ainda.

No entanto, como informou a revista norte-americana Variety, "Avatar 2" (que custou mais de US$ 350 milhões) precisa arrecadar US$ 2 bilhões para que a produção das próximas sequência seja garantida. Até hoje, cinco filmes tiveram mais de US$ 2 bilhões: "Avatar", "Vingadores: Ultimato", "Titanic", "Star Wars: O Despertar da Força", "Vingadores: Guerra Infinita". Destes, "Avatar"(2009) é o primeiro, com US$ 2,9 bilhões e "Titanic" é o terceiro, com US$ 2,2 bilhões.

De toda forma, "Top Gun: Maverick" tem como maior mérito o de resgatar em escala global a paixão dos adultos, que não necessariamente vão ao cinema ver filmes de heróis, pelo simples ato de ir ao cinema. Nesta tão aguardada sequência, a saga do piloto Pete "Maverick" Mitchell, vivido por Cruise, continua décadas depois. Ele segue teimoso e rebelde, mas agora tem de ser um pouco mais humilde e treinar um grupo de pilotos em formação para uma missão especial.

Austin Butler incorpora Elvis no longa dirigido por Baz Luhrmann  - Divulgação - Divulgação
Austin Butler incorpora Elvis no longa dirigido por Baz Luhrmann
Imagem: Divulgação

Outro grande sucesso do ano, que também estreou mundialmente no Festival de Cannes em maio, é "Elvis". O longa de Baz Lurhman estrelado por Austin Butler não é líder mundial de bilheteria, mas é líder do coração dos fãs de Elvis Prestley e foi um dos maiores fenômenos de divulgação do ano. Com estilo exagerado, barroco, mas direção segura de Baz Luhhmann, direção de arte impecável, elenco super azeitado, "Elvis" conquistou até mesmo as novas gerações e deve render pelo menos uma indicação ao Oscar de Melhor Ator a Butler, que até estrelar o longa tinha feito apenas papéis secundários no cinema.

No Brasil, o sucesso de "Medida Provisória"

Taís Araújo em cena "Medida Provisória", destaque das bilheterias brasileiras em 2022 - Divulgação - Divulgação
Taís Araújo em cena "Medida Provisória", destaque das bilheterias brasileiras em 2022
Imagem: Divulgação

Já no Brasil, segundo dados do Observatório do Cinema e do Audiovisual - OCA, nenhuma produção nacional atingiu a casa do milhão de espectadores. O maior sucesso de público foi "Tô Ryca 2", com 518 mil espectadores, seguido por "Detetives do Prédio Azul: Uma Aventura no Fim do Mundo", com 424 mil espectadores. O terceiro da lista é "Medida Provisória", com 408 mil espectadores, e o quarto é "Eduardo&Mônica", com 389 mil. Se levarmos em consideração "Turma da Mônica: Lições", que estreou em 31 de dezembro de 2021, este leva o primeiro lugar, com 544 mil espectadores.

Mas é preciso destacar o "filme evento" em que se tornou "Medida Provisória" de Lázaro Ramos, que estreou depois de uma polêmica demora para obter o certificado para poder ser lançado em circuito comercial, teve campanha de divulgação inteligente e mostrou que há um público ávido para mais histórias protagonizadas por personagens negros no nosso cinema.

Com trama inspirada na peça "Namíbia, não", escrita em 2011 por Aldri Anunciação, "Medida Provisória" é uma ficção científica que conta a história de quando o governo do Brasil decidiu decretar uma medida que obrigava todos os negros a voltarem para a África. Estrelado por Alfred Enock (ator britânico, de filmes como "Harry Potter", filho de pai inglês e mãe brasileira), o filme tem ainda seu Jorge, Thaís Araújo e Adriana Esteves no elenco.

Com 408 mil espectadores, o filme de Lázaro Ramos foi sucesso de bilheteria. Segundo a distribuidora Elo Company, estreou em abril, em 250 salas de todo o País. Na segunda semana de exibição, passou a ocupar 338 salas. Entre abril e junho, foi o filme brasileiro mais assistido nos cinemas. "Medida Provisória" não leva o primeiro lugar em ingressos vendidos, mas leva de longe o primeiro lugar em campanha de marketing, divulgação (tanto em mídias tradicionais quanto nas redes sociais) mais estratégica do ano.

Lázaro Ramos não só dirigiu o longa mas também acompanhou as ações de lançamento e divulgação, postou nas redes, engajou seu público e fez com que o longa fosse um dos mais discutidos do ano no País. Case de sucesso quando o assunto é pensar uma campanha inteligente, boa, bonita e barata, "Medida Provisória" se tornou alvo de debates sobre distribuição e soluções para conquistar o público brasileiro.

"Marte Um"- muito maior que o Oscar

Cena de "Marte Um", respresentante do Brasil no Oscar 2023, que ficou de fora da lista de pré-finalistas - Filmes de Plástico / Divulgação - Filmes de Plástico / Divulgação
Cena de "Marte Um", respresentante do Brasil no Oscar 2023, que ficou de fora da lista de pré-finalistas
Imagem: Filmes de Plástico / Divulgação

Longe de alcançar os números estratosféricos dos blockbusters, mas outro grande sucesso do cinema brasileiro de 2022 é "Marte Um". Dirigido por Gabriel Martins, foi viabilizado com verba vinda do primeiro edital público de longa-metragem destinado para cineastas negros(as) na história do cinema brasileiro.

O filme se passa em Minas e conta a história de uma família como tantas outras do Brasil: enquanto eles sofrem com as questões da economia do País, falta de políticas públicas de um governo que não os prioriza, os Martins levam suas vidas, seus sonhos, seus desejos. A mãe, vivida por Rejane Faria, é diarista. O pai, o ótimo Carlos Francisco, é porteiro-zelador-faz tudo em um condomínio de alto padrão. A filha jovem Nina (Camila Damião) estuda. Ela é a primeira da família a entrar na faculdade e quer se mudar com a namorada. Já o menino, o caçula Deivinho (Cícero Lucas) , joga futebol muito bem, mas sonha mesmo em se tornar astronauta.

Primeiro longa brasileiro com protagonistas negros a ser escolhido para representar o Brasil no Oscar, "Marte Um" fez mais de 100 mil espectadores e teria feito mais se a política de distribuição fosse mais a favor do cinema brasileiro. Infelizmente, não entrou na lista de pré-finalistas ao Oscar 2023, mas, sem receio de cair no mero patriotismo, "Marte Um' é maior que o Oscar. Ao, em pleno 2022, trazer uma trama tão sutil quanto contundente, ser capaz de surpreender por trazer uma família negra em um lugar de não violência ( pelo menos não a óbvia e gráfica, como o cinema, tanto internacional quanto nacional, costuma faer com personagens negros/as), o filme já merece entrar para a História do cinema brasileiro.

Outros curtas e longas, como "Um Dia com Jerusa" (2018, de Viviane Ferreira) e "Temporada" (1019, de Anfré Morais Oliveira), já trouxeram protagonistas negros e negras vivendo histórias líricas, cotidianas e até comuns, mas "Marte Um" ganhou repercussão inédita e, agora, com a estreia em breve no streaming, continua sua bela, e necessária, trajetória de contar aos brasileiros uma história sobre o Brasil que quase nunca ganha as telas do cinema.

"Argentina, 1985"

Ricardo Darín, o procurador Strassera e Peter Lanzani, seu adjunto, Luis Moreno Ocampo em "Argentina 1985" - Divulgação - Divulgação
Ricardo Darín, o procurador Strassera e Peter Lanzani, seu adjunto, Luis Moreno Ocampo em "Argentina 1985"
Imagem: Divulgação

Um dos grandes concorrentes da vaga da América Latina no Oscar 2023, é o argentino "Argetina, 1995". Candidato da Argentina ao Oscar 2023, "Argentina, 1985" é estrelado por Ricardo Darín, nome que não pode faltar em listas sobre o cinema de seu país e que vai aparecer em alguns títulos aqui. O longa dirigido por Santiago Mitre estreou mundialmente no Festival de Veneza 2022, em setembro, e conseguiu a façanha de ganhar os corações tanto do público internacional quanto dos latino-americanos presentes ao evento.

"Argentina, 1985" é de fato o tal do "filme perfeito para o Oscar". É bem realizado, bem dirigido, tem atuações ótimas e um roteiro muito bem amarrado, que conta uma história relevante tanto socio-politicamente quanto na trajetória pessoal de seus personagens. A força está justamente no equilíbrio de todos os elementos. O filme conta a história real do "Juicio de 1985", o julgamento dos militares responsáveis pelos crimes da fase mais terrível da Ditadura que dominou a Argentina por sete anos (de 1976 a 1983), mas que deixou 30 mil desaparecidos.

Na trama, Darín vive o promotor Júlio Strassera que, ao lado de Luis Moreno Ocampo (Peter Lanzani), liderou, em 1985, uma equipe que investigou e processou militares de alta patente que comandaram as Forças Armadas argentinas no período em que ocorreram milhares de prisões, torturas,violações, assassinatos, entre outros crimes contra a humanidade e contra os que se opunham ao regime ditatorial militar.

Ao contrário do Brasil, que decretou Anistia em 1979 (em decreto do então presidente João Baptista Figueiredo) e nunca julgou os crimes cometidos pela Ditadura Militar, "Argentina, 1985" é um vizinho distante o suficiente para nos induzir a pensar que isso jamais seria possível no Brasil, mas próximo o suficiente para provar que, sim, teria sido tão possível quanto necessário realizar os "Juicios" aqui.

Os momentos mais arrepiantes do longa de Mitre não são as dramatizações do julgamento, mas sim as cenas reais do julgamento, a lembrança de que o horror não foi ficção e foi praticado por pessoas tão "comuns" como qualquer outro cidadão. É ótimo entretenimento e, ao mesmo tempo, um documento histórico sobre o quão atentos é preciso estar na defesa do estado democrático e na luta contra a banalização do mal.

"Acreditamos que podemos e que podíamos e achávamos que o "Nunca Mais", como disse o promotor Strassera, seria para sempre. Mas a violência segue existindo e acreditamos que o filme cobra uma vitalidade que nós não pensávamos que cobraria", disse Santiago Mitre ao UOL. Para não esquecer, para aprender, para se emocionar, "Argentina, 1985" é imperdível. O filme está disponível na Amazon Prime Vídeo

O flop dos Oscarizáveis

Em um ano de tantos desafios, retomada do cinema, previsões que não se concretizaram, boas e más surpresas, um ponto não pode ser ignorado. O Oscar, antes visto como fator de sucesso no lançamento de qualquer filme, revelou-se um selo que não garante mais, pelo menos no mercado brasileiro, grande público nas salas. A questão do streaming também conta. O sucesso "No Ritimo do Coração" (Coda), o vencedor do Oscar de Melhor Filme 2022, estreou discretamente nas salas em 2021 e, em seguida, na Apple TV+, voltou a reestrear nas salas em abril, mas sua bilheteria foi fragmentada. Já "Ataque dos Cães, que levou Melhor Direção no Oscar 2022 para Jane Campion, também teve estreia estratégica em 2021 nas salas, mas estreou pouco tempo depois na Netflix. "Amor. Sublime, Amor", de Steven Spielberg, também é estreia de 2021.

Das estreias nos cinemas em 2002 de filmes premiados no Oscar deste ano, "Spenser" teve o melhor desemprenho de público. A história de um fim de semana de Natal da princesa Diana rendeu uma indicação ao Oscar de Melhor atriz a Kristen Stewart e cerca de 105 mil espectadores no Brasil. ""Belfasta". "Licorice Pizza", "O Beco do Pesadelo", "Mães Paralelas", "Drive my Car" (Melhor Filme Internacional), "A Pior Pessoa do Mundo", entre outros, tiveram desempenho bom para o circuito de filmes autorais, para o público adulto, mas, infelizmente, nem de longe se aproximam dos bilhões das franquias de Tom Cruise, James Cameron e/ou as sagas de heróis.

Chegamos aqui a um conundrum (ou dilema). Ainda que esta análise seja incompleta (afinal, seria necessário um grande estudo mais aprofundado), podemos concluir que 2022 se encerra, com exceção das grandes franquias, com o desafio de não perder os espectadores que voltaram às salas com histórias que, para além de sua qualidade técnica, sejam capazes de se comunicar com o público principalmente em sua fase de lançamento. Como conquistar corações e mentes com orçamento enxuto, a competição das tantas telas (do streaming ao celular) e a hegemonia dos blockbusters? As lições de criatividade e comunicação direta com o público que "Medida Provisória" e "Marte Um" trouxeram podem ser um bom começo para 2023.